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domingo, 14 de janeiro de 2018

Acossado


"Acossado", de 1960, é um dos filmes mais importantes e representativos da "nouvelle vague", ou "nova onda", movimento do cinema francês caracterizado por uma série de produções de baixo custo, encabeçadas por jovens autores transgressores do cinema convencional, artistas como François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Agnès Varda, Alain Resnais, entre muitos outros.

Estes diretores foram responsáveis por criar um novo cinema na década de 60, com técnicas inusitadas de filmagem, preferência por locações urbanas e externas, alternância entre cortes bruscos e tomadas longas e uma grande identificação com o amor livre entre os personagens protagonistas. A "nouvelle vague" antecipou todas as transformações artísticas que o cinema sofreria a partir de 1968, o período das "primaveras" na Europa e em todo o mundo.

Godard (à esquerda) e Truffaut (1932-1984), dois dos maiores expoentes do cinema francês e da "nouvelle vague".

É este o lugar que ocupa "Acossado" na história do cinema, uma obra emblemática de Jean-Luc Godard. É o primeiro longa do diretor e com certeza o filme mais importante de toda a sua filmografia, que permanece sendo construída até hoje (o último filme de Godard foi lançado em 2014). A obra é uma breve imersão no romance entre um casal em Paris, o francês Michel, interpretado pelo galã Jean-Paul Belmondo e a norte-americana Patricia (Jean Seberg, no papel de sua carreira).

Michel é um ladrão de carros, assassino, batedor de carteiras e verdadeiro malandro, que em uma de suas fugas reencontra Patricia, nova-iorquina vendedora de jornais do "NY Herald Tribune". Os dois acabam indo parar no apartamento dela, deitados na cama, enquanto Patricia reluta a dormir com Michel. Ela não sabe dos crimes dele e ele não parece nem um pouco arrependido do que fez, buscando apenas se safar e continuar ganhando dinheiro fácil cobrando de seus devedores.

Michel e Patricia, no apartamento. O casal foi interpretado por Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg (1938-1979).

O roteiro, que é baseado em um artigo de Truffaut e Chabrol, é bastante simples e os diálogos são todos muito curtos, improvisados. Ao contrário do que pode supor um filme francês do período, não há grande filosofia nas palavras de Michel e Patricia. Eles são apenas dois jovens sem grandes expectativas, que decidem passar uma tarde de sol juntos fazendo amor. Michel não é de forma alguma um amante romântico como o personagem Romeu, que junto à Julieta enfeita a cabeceira da cama de Patricia, ela sim uma jovem querendo ser amada.

Michel é um canastrão, apaixonado pela incrível beleza de sua namorada norte-americana. Ele quer que ela se mude para a Itália com ele, mas mal consegue dar bons motivos para que ela o acompanhe. Afinal de contas, da sua boca não consegue sair nada belo. Os dois seguem sem rumo por uma estonteante Paris, ensolarada de dia e muito iluminada por letreiros em neon à noite. Os "jump cuts" no carro de Michel, transições bruscas entre tomadas, são uma das marcas de "Acossado", imortalizado como um filme cult e como uma das mais fascinantes obras do cinema europeu.

Patricia e seu urso. Uma cena e muitos significados.

Existem pequenos e sutis detalhes que dão ao filme o caráter de uma verdadeira obra de arte. Na cena em que o casal está no apartamento de Patricia, Michel quer apenas fazer sexo com a companheira, enquanto ela insiste em falar sobre música e literatura, segurando um urso de pelúcia no colo. Um pequeno objeto como um ursinho é uma poderosa forma de comunicação entre diretor e público, quando Godard, sem precisar de palavras, nos mostra o contraste entre a imaturidade e a vida adulta da protagonista, em oposição à sagacidade de Michel. Patricia tem dificuldades para acender o seu cigarro, ao passo que seu companheiro faz isso em menos de um segundo. Estas sutilezas são determinantes para a construção dos personagens, já que os diálogos são tão escassos e muitas vezes pouco reveladores da personalidade dos protagonistas.

Cena dos bastidores do filme. A cadeira de rodas improvisa um movimento de câmera no set.

Nas ruas de Paris, muitos cidadãos parecem notar e reconhecer Michel, que está estampado nos principais jornais da cidade como procurado pela polícia. Há, a todo momento, a sensação de que o jovem protagonista pode ser preso e capturado, daí o título do filme. Os longos planos sequências de Godard são perceptíveis principalmente nos momentos em que Michel é perseguido. No entanto, quando o jovem bandido está aproveitando a vida com a companheira, o diretor optou pelos cortes secos.

Esta é a estética por trás de um filme cujo maior mérito foi o pioneirismo em tratar o cinema não apenas como entretenimento, mas como uma das mais poderosas e impressionantes formas de arte visual já feitas pelo homem. Nenhum cinéfilo é o mesmo depois de assistir "Acossado". 

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