"Bacurau", de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é certamente o filme brasileiro mais comentado de 2019. Um dos maiores colaboradores para o grande aumento da expectativa nacional em torno do filme foi a sua vitória no Prêmio do Júri no Festival de Cannes, algo que deu visibilidade mundial ao longa brasileiro, sendo inclusive cotado a ser o nosso representante no Oscar, embora outro filme também premiado em Cannes tenha sido escolhido em seu lugar. O hype de Bacurau foi muito alto, não apenas pelo sucesso nos festivais, mas porque Kleber Mendonça Filho é um diretor estigmatizado pelo seu público externo e interno como um cineasta que se manifesta politicamente sobre o seu país, especialmente em pautas da esquerda brasileira, como o impeachment de Dilma e a prisão de Lula. É impossível falar de "Bacurau" sem falar sobre este assunto.
Em tempos de bolsonarismo e ataques diários à arte e cultura, consideradas ferramentas de propagação da ideologia de esquerda, já dá pra imaginar que um filme dirigido e escrito por um cineasta que levanta a bandeira do "Lula livre" seria imediatamente antipatizado pela crítica direitista brasileira, seja ela especializada ou não em cinema. O mais curioso é que se não fosse por essa marca política na carreira de Kleber Mendonça Filho, "Bacurau" jamais seria prenunciado como uma obra ideológica ou propagandística, até porque isso é algo que o filme certamente não é. "Bacurau" possui uma vertente política tão fraca quanto diversas das metáforas e conceitos mal escondidos em seu roteiro, que parece muito mais uma versão longa e mais qualificada de um episódio de Black Mirror do que um filme revolucionário e visionário que "todo brasileiro deveria assistir".
Quando entrei na sala de cinema pra ver "Bacurau" eu não fazia ideia sobre qual era o assunto abordado no filme. Eu sabia somente que a história se passava no interior do Brasil, em uma cidade fictícia sertaneja cuja placa de boas vindas apresentada logo no início da história aponta a seguinte inscrição: "Bacurau: se for, vá na paz". Conforme o tempo de filme foi passando, percebi que havia no roteiro de Kleber Mendonça Filho uma escancarada e rasa crítica ao coronelismo e uma tentativa até certo ponto bem realizada de demonstrar a miséria e a simplicidade de uma comunidade interiorana esquecida nos confins de Pernambuco. A morte é uma constante no roteiro, desde quando presenciamos um acidente com um descarregamento de caixões na estrada e principalmente o momento do enterro de dona Carmelita, a mística matriarca de Bacurau.
A julgar pelos primeiros minutos do longa, tudo parece muito promissor, principalmente pela visão da direção do filme em caracterizar o vilarejo em seus detalhes, provocando um grande reconhecimento entre nós espectadores e os demais brasileiros representados na tela, o que acontece mesmo entre os espectadores distantes da vida nordestina, mas que conseguem enxergar no povo de Bacurau um retrato do Brasil que não é rotineiramente representado nas telas, mas que sabemos que existe de maneira generalizada fora do eixo sul-sudeste de nosso país. Essa inicial incursão pelo interior de uma cidade humilde nordestina lembra bastante a visão de Walter Salles em "Central do Brasil", pela delicadeza e humanismo de algumas de suas tomadas. Acontece que em um determinado momento da história, mais especificamente na chegada de dois motociclistas forasteiros à Bacurau, ocorre uma grande ruptura na narrativa do filme e somos apresentados a sua verdadeira trama, que não é propriamente a representação da vida humilde no interior do país.
Após essa ruptura no roteiro, nos vemos diante de um enredo tão superficial quanto o de um jogo de vídeo game norte-americano. Aliás, aquilo que acontece diante de nossos olhos em Bacurau nada mais é do que a representação de um jogo de gato e rato da vida real, onde norte-americanos brancos e fortemente armados assassinam sertanejos de Bacurau a troco de pontuação em um aparente jogo com ranking de "kills", exatamente como um "free fire" jogado no interior do Brasil, um tipo de jogo eletrônico por sua vez inspirado em um romance japonês que fez escola, chamado "Battle Royale".
Sei que parece muita informação, mas são muitas as influências para Bacurau, filme com referências a uma série de elementos da cultura pop do século XXI, entre eles a já citada "Black Mirror", ou a trilha eletrônica de "Stranger Things" e principalmente a estética cinematográfica de Quentin Tarantino. Algumas das propostas de Kleber Mendonça Filho simplesmente não funcionam, como o pouco digerível drone em formato de disco voador ou a caricata representação dos norte-americanos como os aliados imperialistas da política coronelista nordestina. Tudo muito óbvio e raso.
Mas é claro que o filme funciona em alguns aspectos, principalmente se o espectador extrair dele qualquer discussão ideológica séria que poderia ter sido produzida sobre a política brasileira realizada no sertão nordestino. Visto como um faroeste brasileiro fortemente inspirado por Tarantino, o filme pode até distrair e divertir o público com as realistas cenas de violência e o seu potencial de produzir na plateia o sentimento coletivo de vingança e revanche contra os norte-americanos vilões da história, que vieram para o Brasil com o único objetivo de matar seres que para eles estão em uma condição inferior a de animais. Há uma cena em que um dos personagens gringos se surpreende quando um colega mata um cachorro, mas não tem reação semelhante quando ele mata uma pessoa. É claro que esta tirania e selvageria dos assassinos norte-americanos desperta no povo de Bacurau o desejo de vingança e de autoproteção, o que faz a trama do filme entrar de vez em um território extremamente problemático.
Bacurau é uma utopia negativa de um Brasil futurista que o próprio Kleber Mendonça Filho acredita que o país pode se tornar em algumas décadas, um Brasil onde o sertão nordestino tornou-se um parque de diversões de norte-americanos, aliados e agenciados pela própria elite política brasileira, no filme representada por um prefeito corrupto. Ao nos mostrar aquilo que o país pode se tornar, o diretor optou também por apresentar aquilo que o povo deveria fazer, o que dá ao filme uma característica subversiva, já que a alternativa encontrada pelo povo de Bacurau é se aliar e perdoar um de seus maiores criminosos e pegar em armas para se defender dos gringos imperialistas. Curiosamente, as armas usadas pelos brasileiros são todas norte-americanas e foram retiradas das paredes do museu local, o que demonstra a natureza do passado rebelde e não subserviente dos sertanejos brasileiros, descendentes de cangaceiros. Isto justifica a placa de "boas vindas" da cidade como uma verdadeira ameaça: "se for, vá na paz".
Esta solução encontrada por Kleber Mendonça é problemática porque responde a barbárie com barbárie, violência contra violência e justiça feita com as próprias mãos. É claro que politicamente falando o filme se torna ainda mais assustador quando pensamos que boa parte dos brasileiros de fato acredita que a violência privada pode ser a solução contra os problemas da nossa segurança pública, mas o público de Bacurau, supondo que ele tivesse um alcance verdadeiramente popular, enxergaria a obra sob o prisma da crítica de Kleber Mendonça Filho ou das suas próprias convicções a respeito da legitimidade do revanchismo como solução para a nossa segurança pública? Este paradoxo é muito semelhante ao causado por "Tropa de Elite" em 2007, um filme que conquistou uma imensa popularidade para além do público cult de Bacurau e chocou uma pequena parcela sensata de nosso país ao descortinar um novo herói nacional: um policial autoritário e criminoso. Se "Bacurau" rompesse a bolha do cinema intelectual e universitário, como a população em geral enxergaria o comportamento de seus protagonistas? Considerando que uma grande parcela dos brasileiros se encontra hoje sob os efeitos do poderoso psicotrópico do conservadorismo, a resposta pode ser tão assustadora quanto a concepção por trás de "Bacurau", um filme que só funciona se interpretado como um longa de terror sertanejo.
Quando entrei na sala de cinema pra ver "Bacurau" eu não fazia ideia sobre qual era o assunto abordado no filme. Eu sabia somente que a história se passava no interior do Brasil, em uma cidade fictícia sertaneja cuja placa de boas vindas apresentada logo no início da história aponta a seguinte inscrição: "Bacurau: se for, vá na paz". Conforme o tempo de filme foi passando, percebi que havia no roteiro de Kleber Mendonça Filho uma escancarada e rasa crítica ao coronelismo e uma tentativa até certo ponto bem realizada de demonstrar a miséria e a simplicidade de uma comunidade interiorana esquecida nos confins de Pernambuco. A morte é uma constante no roteiro, desde quando presenciamos um acidente com um descarregamento de caixões na estrada e principalmente o momento do enterro de dona Carmelita, a mística matriarca de Bacurau.
A julgar pelos primeiros minutos do longa, tudo parece muito promissor, principalmente pela visão da direção do filme em caracterizar o vilarejo em seus detalhes, provocando um grande reconhecimento entre nós espectadores e os demais brasileiros representados na tela, o que acontece mesmo entre os espectadores distantes da vida nordestina, mas que conseguem enxergar no povo de Bacurau um retrato do Brasil que não é rotineiramente representado nas telas, mas que sabemos que existe de maneira generalizada fora do eixo sul-sudeste de nosso país. Essa inicial incursão pelo interior de uma cidade humilde nordestina lembra bastante a visão de Walter Salles em "Central do Brasil", pela delicadeza e humanismo de algumas de suas tomadas. Acontece que em um determinado momento da história, mais especificamente na chegada de dois motociclistas forasteiros à Bacurau, ocorre uma grande ruptura na narrativa do filme e somos apresentados a sua verdadeira trama, que não é propriamente a representação da vida humilde no interior do país.
Após essa ruptura no roteiro, nos vemos diante de um enredo tão superficial quanto o de um jogo de vídeo game norte-americano. Aliás, aquilo que acontece diante de nossos olhos em Bacurau nada mais é do que a representação de um jogo de gato e rato da vida real, onde norte-americanos brancos e fortemente armados assassinam sertanejos de Bacurau a troco de pontuação em um aparente jogo com ranking de "kills", exatamente como um "free fire" jogado no interior do Brasil, um tipo de jogo eletrônico por sua vez inspirado em um romance japonês que fez escola, chamado "Battle Royale".
Sei que parece muita informação, mas são muitas as influências para Bacurau, filme com referências a uma série de elementos da cultura pop do século XXI, entre eles a já citada "Black Mirror", ou a trilha eletrônica de "Stranger Things" e principalmente a estética cinematográfica de Quentin Tarantino. Algumas das propostas de Kleber Mendonça Filho simplesmente não funcionam, como o pouco digerível drone em formato de disco voador ou a caricata representação dos norte-americanos como os aliados imperialistas da política coronelista nordestina. Tudo muito óbvio e raso.
Mas é claro que o filme funciona em alguns aspectos, principalmente se o espectador extrair dele qualquer discussão ideológica séria que poderia ter sido produzida sobre a política brasileira realizada no sertão nordestino. Visto como um faroeste brasileiro fortemente inspirado por Tarantino, o filme pode até distrair e divertir o público com as realistas cenas de violência e o seu potencial de produzir na plateia o sentimento coletivo de vingança e revanche contra os norte-americanos vilões da história, que vieram para o Brasil com o único objetivo de matar seres que para eles estão em uma condição inferior a de animais. Há uma cena em que um dos personagens gringos se surpreende quando um colega mata um cachorro, mas não tem reação semelhante quando ele mata uma pessoa. É claro que esta tirania e selvageria dos assassinos norte-americanos desperta no povo de Bacurau o desejo de vingança e de autoproteção, o que faz a trama do filme entrar de vez em um território extremamente problemático.
Bacurau é uma utopia negativa de um Brasil futurista que o próprio Kleber Mendonça Filho acredita que o país pode se tornar em algumas décadas, um Brasil onde o sertão nordestino tornou-se um parque de diversões de norte-americanos, aliados e agenciados pela própria elite política brasileira, no filme representada por um prefeito corrupto. Ao nos mostrar aquilo que o país pode se tornar, o diretor optou também por apresentar aquilo que o povo deveria fazer, o que dá ao filme uma característica subversiva, já que a alternativa encontrada pelo povo de Bacurau é se aliar e perdoar um de seus maiores criminosos e pegar em armas para se defender dos gringos imperialistas. Curiosamente, as armas usadas pelos brasileiros são todas norte-americanas e foram retiradas das paredes do museu local, o que demonstra a natureza do passado rebelde e não subserviente dos sertanejos brasileiros, descendentes de cangaceiros. Isto justifica a placa de "boas vindas" da cidade como uma verdadeira ameaça: "se for, vá na paz".
Esta solução encontrada por Kleber Mendonça é problemática porque responde a barbárie com barbárie, violência contra violência e justiça feita com as próprias mãos. É claro que politicamente falando o filme se torna ainda mais assustador quando pensamos que boa parte dos brasileiros de fato acredita que a violência privada pode ser a solução contra os problemas da nossa segurança pública, mas o público de Bacurau, supondo que ele tivesse um alcance verdadeiramente popular, enxergaria a obra sob o prisma da crítica de Kleber Mendonça Filho ou das suas próprias convicções a respeito da legitimidade do revanchismo como solução para a nossa segurança pública? Este paradoxo é muito semelhante ao causado por "Tropa de Elite" em 2007, um filme que conquistou uma imensa popularidade para além do público cult de Bacurau e chocou uma pequena parcela sensata de nosso país ao descortinar um novo herói nacional: um policial autoritário e criminoso. Se "Bacurau" rompesse a bolha do cinema intelectual e universitário, como a população em geral enxergaria o comportamento de seus protagonistas? Considerando que uma grande parcela dos brasileiros se encontra hoje sob os efeitos do poderoso psicotrópico do conservadorismo, a resposta pode ser tão assustadora quanto a concepção por trás de "Bacurau", um filme que só funciona se interpretado como um longa de terror sertanejo.
Falou tudooooooo
ResponderExcluirQue coisa, é a primeira opinião plausível e lógica que li e me satisfez por se o primeiro ponto-de-vista negativo sobre o super-hype nacional de 2019 "Bacurau". E pelo menos, não caiu na esparrela patética da "polarização política que domina o país".
ResponderExcluirÓtimo blog, continue assim (^^)
P.S.: eu só ressalvo minha opinião, de que agora, todo mundo pode me julgar como"lulista" ou "bolsonarista", como quiserem, não me importo, não devo nada a ninguém !!!!!!!
Skox, muito obrigado pelo seu comentário!
ExcluirAcredito que, conforme você falou, a sua opinião sobre o filme não necessariamente diz nada sobre o seu posicionamento político! Concordo com a sua posição. Abraço!