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sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Matrix

"Matrix", de 1999, foi um dos últimos filmes do século XX, lançado quando os computadores estavam lentamente invadindo as residências das pessoas no Brasil. Lembro que a primeira vez que assisti o filme foi em uma cópia em CD, compactado em um formato que só era lido por computadores. É irônico que uma ficção científica como essa tenha sido descoberta por mim e muitos outros amigos da minha geração através da pirataria. Isso com certeza deu à história um aspecto ainda mais instigante, porque todo adolescente nerd do início dos anos 2000 tinha curiosidade sobre linhas de código e programação. Quem assistiu o filme quando criança ou adolescente, no entanto, dificilmente compreendeu a obra com maturidade, razão pela qual rever o filme é um dever de casa mesmo depois de quase 20 anos de seu lançamento.

O filme foi dirigido e escrito pelas irmãs Wachowski - que à época eram identificados como irmãos, mas hoje são mulheres transgênero - a partir de uma série de influências literárias sobre o que seria a matrix, o mundo virtual onde se passa a história da obra. Creio que o ponto de partida das irmãs na concepção do roteiro foi o romance cyberpunk de William Gibson, "Neuromancer", de 1984, embora a concepção da matrix seja distinta no filme, mas com algumas proximidades. De modo geral, "Matrix" conta a história de um futuro distópico em que a inteligência virtual das máquinas provocou a insurgência dos computadores sobre os homens, que passaram a ser dominados como escravos através do aprisionamento de suas consciências em uma alucinação coletiva chamada matrix. A matrix é um programa de computador criado pelos próprios computadores, para iludir os seres humanos enquanto sua energia vital é utilizada como combustível para o funcionamento das máquinas.

Fora da alucinação coletiva existe um grupo de rebeldes que de alguma forma conseguiu libertar os seus corpos e mentes da escravidão das máquinas. Vivendo clandestinamente em uma nave, guiados pelo líder Morpheus (Laurence Fishburne), eles se conectam à matrix através de invasões ao programa original, buscando encontrar um "escolhido", que teria a capacidade de distorcer o mundo virtual da matrix a seu favor quando desejasse, através da manipulação do código do programa apenas com o poder de sua mente. A história do filme tem início quando Morpheus acredita ter encontrado o escolhido: um hacker que trabalha em uma firma de softwares e, nas horas vagas, pirateia programas em disquetes. O nickname dele é Neo, interpretado por Keanu Reeves no trabalho mais importante de sua carreira. Quando confrontado com a verdade sobre a matrix, Neo precisará escolher entre permanecer ignorante sobre o mundo em que vive, mantendo a sua rotina de hacker na matrix, ou aceitar desconectar-se do ambiente virtual e lutar contra a opressão das máquinas sobre os homens. Esta escolha é representada na obra por duas pílulas, uma vermelha e a outra azul, sobre as mãos de Morpheus. Neo só pode escolher uma para tomar.

Existe um aspecto um tanto quanto religioso e filosófico na abordagem da escolha de Neo, já que essa abrupta tomada de consciência do mundo real não é muito diferente daquela descrita por Platão no mito da caverna. Além disso, a ideia de Morpheus como o responsável por trazer a Neo a notícia de que ele poderia ser o escolhido se parece muito com a própria história de Jesus Cristo, um homem comum profetizado como o salvador da humanidade. Existe um momento marcante no filme quando um dos antagonistas da história se delicia com um pedaço de carne vermelha e diz: "sei que isso não é real, mas a ignorância é uma benção". A todo momento o roteiro trabalha com a ideia de que uma vez alcançado o conhecimento o caminho é irreversível. A matrix só fazia sentido para Neo enquanto ele acreditava que ela era verdadeira. E o próprio personagem tem dificuldade para aceitar isso, a princípio, como no momento em que ao passar em frente ao seu restaurante preferido ele diz: "eu costumava jantar ali, o macarrão era tão bom". A comida, os sentidos, o próprio existir na alucinação coletiva em que faz parte passam a ser objeto de desconstrução por Neo, e ele passa a tomar consciência que é essa desconstrução da realidade que fará dele uma pessoa diferenciada na luta contra as máquinas.

É perceptível certa dificuldade dos roteiristas em lidar com o tempo em que o filme se desenvolve. Há muita pressa para que Neo entre em ação na matrix como "o escolhido", de modo que o seu preparo é todo realizado através de instalação de programas em seus cérebros, o que não deixa de ser uma alternativa criativa dos escritores. Depois de um tempo de treinamento em bases frias da matrix, o que rende as cenas de Kung Fu mais cultuadas do filme, Neo finalmente se "pluga" no universo virtual, para que encontre a figura do Oráculo, uma personagem que poderá dizer se o homem é ou não de fato o escolhido procurado por Morpheus. Essa intrusão na matrix, no entanto, se mostra fracassada, porque os rebeldes são localizados pelos "agentes", uma espécie de anti-vírus que reconhece invasões no sistema original do programa. Com Morpheus capturado, Neo e sua colega Trinity (Carrie-Anne Moss) precisam encontrar uma forma de salvá-lo.

As cenas em que Neo e Trinity invadem o prédio onde Morpheus está capturado são uma espécie de deleite para o fã de filmes de ação e ficção científica. É que neste momento Neo vai pela primeira vez na história modificar a matrix a seu favor nas lutas contra os agentes. Foram essas cenas que mais provocaram o sucesso do filme quando foi lançado, porque elas fazem um uso competente da computação gráfica para que Neo se desvie de balas de revólver, lute Kung Fu em ultra velocidade e inclusive consiga segurar um helicóptero com as próprias mãos. Estes momentos foram os responsáveis por dar uma identidade visual ao filme, que acabou por consagrá-lo como um clássico do gênero, sendo replicado muitas e muitas vezes como referências até em desenhos animados como "Shrek", de 2001. A criatividade do roteiro, a atuação contida e pouca expressiva de Keanu Reeves, os elementos filosóficos, a estética nonsense das cenas de ação... tudo isso contribuiu para cristalizar "Matrix" como um dos filmes de ficção científica mais importantes do cinema, ainda que seu maior trunfo não seja propriamente o conteúdo da história, mas sim a beleza técnica de sua narrativa.

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