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sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain

Para a minha geração, quase toda incursão por um cinema denominado alternativo ou cult teve início com "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", filme francês de 2001, dirigido por Jean-Pierre Jeunet. É comum que o filme seja associado a cinéfilos descolados ou referenciado em rodas de conversa sobre filmes europeus, por causa de certas excentricidades de seu roteiro, pela figura marcante da personagem protagonista ou pela trilha sonora inesquecível de Yann Tiersen. A obra de Amélie Poulain foi uma das primeiras do século XXI a ultrapassar os limites das prateleiras das locadoras e ganhar uma considerável veneração de seu público, que apropriou alguns singelos elementos do filme à cultura geral sobre cinema, transformando o filme em um clássico instantâneo.

O roteiro co-escrito por Jean-Pierre Jeunet parte sempre de um raciocínio indutivo para trabalhar o detalhamento de seus personagens, descrevendo-os a partir de suas particularidades. Isso faz com que as figuras mais importantes para a história ganhem certa profundidade, como é o caso do pai de Amélie, que é representado como um homem metódico, por seus gostos e desgostos extremamente sistemáticos. A narração no início do filme é responsável por essa breve apresentação dos protagonistas, sempre destacando trivialidades do cotidiano de cada personagem. Os primeiros minutos do filme, por exemplo, reforçam a simultaneidade de acontecimentos comuns, como o pouso de uma mosca ou o balanço de copos sobre uma mesa, até chegar no evento sem o qual o filme sequer existiria: a concepção de Amélie.

Filmado em Montmartre, um bairro de Paris, a direção do filme se valeu de uma estética muito focada na simplicidade da rotina dos parisienses, nos gestos e sons do dia-a-dia de uma região que guarda um certo saudosismo da França dos filmes da metade do século passado. Isso é reforçado no ambiente familiar do café onde Amélie trabalha - um local frequentado por tipos raros - e no pequeno hortifruti onde um grosseiro patrão humilha o seu funcionário. Há um evidente reforço na sutileza dos detalhes e das insignificâncias da vida urbana, o que ultrapassa as locações e alcança também a convivência harmoniosa entre Amélie e seus vizinhos ou a maneira como a protagonista valoriza os moradores de rua ou pedintes que eventualmente cruzam o seu caminho. Nota-se uma despretensiosidade na Paris de Amélie Poulain que existe de forma idealizada no roteiro de Jeunet. E é exatamente isso o que o filme procura retratar.

A narração desaparece em determinado momento da história, até porque o roteiro passa a caminhar com os próprios pés quando Amélie encontra escondido na parede de sua casa algo que vai mudar a sua forma de conceber a vida. Há também uma história de amor que conduz o filme até o final, que em determinados momentos peca por certo pieguismo. Ainda assim, a personalidade retraída de Amélie no quesito relacionamentos, bem como a extravagância do homem por quem ela se apaixona, dão vida a uma história de amor cômica e um tanto quanto fantástica. O filme, afinal de contas, é uma declaração de amor à simplicidade da vida cotidiana burguesa, dos pequenos prazeres a que deveríamos nos permitir, como quebrar a cobertura de uma sobremesa ou jogar pedras no rio. Esta simplicidade, no entanto, é vista por boa parte da sociedade como uma escolha de vida pueril: "são tempos difíceis para os sonhadores", como diz uma das personagens.

Creio que "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", seja por si mesmo uma fábula moderna, uma espécie de conto de fadas com uma protagonista de comportamento exótico, que vive sozinha em seu apartamento na capital francesa. Analisado hoje, o filme poderia ser julgado por algumas pessoas como mais uma obra sobre os problemas de uma garota branca, como foram recebidos por alguns críticos os excelentes "Frances Ha", de Noah Baumbach e "Lady Bird", de Greta Gerwig, obras posteriores. O famoso close em Amélie segurando a bandeja de café no seu trabalho, quando vemos pela primeira vez a personagem brilhantemente interpretada por Audrey Tautou, é revelador de uma protagonista sem o devido glamour de uma heroína de comédia romântica. O mesmo se pode dizer do seu parceiro, que trabalha em uma vídeo-locadora de filmes eróticos. Há uma constante desconstrução dos principais estereótipos de filmes do mesmo gênero, o que para a crítica pareceu em alguns momentos uma tentativa um pouco artificial de transformar o filme em uma experiência diferente do que se fazia no cinema convencional.

Escolhi este filme para iniciar as postagens de 2019 porque faz dez anos que o assisti pela primeira vez. Ao revê-lo na Netflix encontrei o meu mesmo estado de espírito ao ouvir as canções de Yann Tiersen, especialmente "Comptine d'un autre été" e ver as tomadas nas ruas de Paris, cidade que nunca fui, e na Basílica de Sacré-Couer. É claro que ver o filme dá uma enorme vontade de arrumar as malas e ir conhecer aquele cantinho da Europa (o que foi feito por muita gente), tirar fotos em cabines telefônicas ou ir procurar o quadro de Renoir (que na realidade está em um museu dos Estados Unidos). Mas ainda que isso não seja possível, creio que o maior impacto da história de Amélie Poulain sob os seus espectadores seja o reforço da necessidade de valorizar os pequenos detalhes de nosso dia-a-dia, por vezes esquecidos. O prazer de preparar um bolo, comprar verduras, ouvir histórias dos vizinhos... Acredito que a obra ganha conotações de contos de fadas justamente por isso, por encantar quem assiste ao filme e nos fazer acreditar que boa parte do que é bom em nossa vida está bem na nossa frente. Feliz ano novo!

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