"Pulp Fiction", de 1994, é o filme mais bem sucedido de Quentin Tarantino, vencedor do Oscar de melhor roteiro e da Palma de Ouro no Festival de Cannes no mesmo ano, o que é bastante incomum considerando a natureza diferente das duas premiações. É uma obra que subverte uma série de padrões do cinema norte-americano com uma metalinguagem que se tornaria a marca do diretor, que até então havia dirigido apenas um filme: "Cães de Aluguel", de 1992. Pelo conteúdo violento, elenco estrelado e trilha sonora feita por quem conhece de verdade a qualidade da boa música, "Pulp Fiction" já entraria para a história do cinema, mas é o seu roteiro o verdadeiro trunfo de Tarantino, um grande contador de histórias.
O filme começa com uma breve definição de seu título. "Pulp Fiction" é o nome dado a livros ou revistas de baixa qualidade, muito comuns na metade do século passado, que contavam histórias sensacionalistas sobre crimes, com conteúdo violento e palavreado de baixo calão. Ao trazer essa definição logo nos créditos iniciais, Tarantino está de certa forma antecipando ao seu espectador sobre o tipo de filme que ele verá. E, de fato, a história é basicamente a ação de criminosos em Los Angeles, contada de forma não linear e com pouco apego à cronologia dos fatos. Como um livro do gênero "pulp", o diretor dividiu a história em sete capítulos com títulos sugestivos. O prólogo e o epílogo da história se encontram, fechando um ciclo apesar da maneira desconstruída que o roteiro se apresenta nos outros cinco episódios do miolo do filme.
Boa parte do roteiro é dedicada a diálogos espirituosos entre os personagens protagonistas, especialmente Vincent Vega (John Travolta) e Jules Winnfield (Samuel L. Jackson). Em uma das cenas mais marcantes do filme, os dois andam de carro por Los Angeles falando sobre trivialidades, como as principais diferenças nos costumes entre europeus e norte-americanos, especialmente o nome dos lanches no Mc Donalds. Ignorando que os protagonistas são criminosos de sangue frio, o filme os apresenta como pessoas comuns, mesmo ficando muito claro a maneira apática como eles agem após matar uma pessoa sem nenhuma razão aparente. Há um momento em que o personagem de Harvey Keitel (uma aparição rápida e memorável no filme) encara um veículo ensanguentado e naturalmente pede um café com creme, que bebe com muita calma.
Uma das histórias mais divertidas de "Pulp Fiction" é o encontro entre Vincent Vega e Mia Wallace (Uma Thurman), a esposa do chefe de Vega. Os dois vão jantar em um restaurante temático dos anos 50, o que não deixa de ser muito curioso considerando que John Travolta ganhou fama em todo o mundo por estrelar "Grease", filme que se passa justamente nessa época. E é claro que Tarantino não desperdiçaria o ator, que ele colocou para dançar com sua companheira Mia em um concurso relâmpago de twist, onde os dois se apresentam em uma sequência célebre ao som da canção "You Never Can Tell", de Chuck Berry. Há um claro desconforto no personagem de Travolta (que não é dançarino e sim um assassino de aluguel), mas ainda assim ele dança com a sua marca registrada, mesmo após muitos anos e alguns quilos a mais. O ator foi indicado ao Oscar por este papel, que é certamente o melhor de toda a sua carreira. Uma Thurman, também indicada ao Oscar, ainda colaborou com Tarantino outras duas vezes em "Kill Bill". Uma atriz fantástica.
Outro grande destaque é Bruce Willis interpretando Butch, um boxeador em fim de carreira. Essa é uma história paralela no filme, inicialmente desconectada do plot principal mas que depois acaba se cruzando com o resto da história. Aliás, Tarantino faria isso outras vezes na sua carreira, filmando a mesma história sob perspectivas diferentes, desconstruindo a maneira como o cinema sempre tratou a linearidade do tempo. É claro que isto não foi uma invenção do diretor, mas contribuiu para a popularização deste tipo de montagem em filmes do gênero. "Cidade de Deus", de 2002, dirigido por Fernando Meirelles é uma obra claramente influenciada pelo cinema de Tarantino. Voltando a Bruce Willis, creio que ele deve ter sido o ator mais bem pago do elenco, o que não foi nenhum desperdício considerando a sua bela atuação e algumas leves referências de Tarantino ao estigma do ator representando heróis de filme de ação, como "Duro de Matar", que marcou a sua carreira.
Quentin Tarantino experimentou bastante na direção de "Pulp Fiction", brincando com o cinema, a música e a ironia na construção de seus diálogos. Quando Mia Wallace pede um milk-shake no restaurante dos anos 50, Vincent Vega acha um absurdo ela ter pago 5 dólares por aquela bebida. Algumas horas antes, no entanto, o criminoso havia comprado 3 gramas de cocaína por 1500 dólares. O palavreado usado pelos personagens é também uma marca do roteiro, que usa e abusa da controversa palavra "nigger". Aliás, o conflito racial entre negros e brancos é uma presença constante na obra do diretor, que parece desfrutar de uma certa autoridade para abordar o assunto sem ganhar antipatia dos grupos militantes nos Estados Unidos. Pelo contrário, creio que Tarantino seja uma pessoa respeitada entre esses grupos políticos, mesmo os radicais. "Django", seu filme de 2012, aborda quase que unicamente a temática da escravidão de uma maneira muito convergente com a historiografia revisionista sobre o assunto. Samuel L. Jackson, um dos mais importantes atores negros do cinema norte-americano, trabalhou outras três vezes com Tarantino. Falar do racismo, mesmo de que forma indireta ou irreverente, parece ser um compromisso político na filmografia do diretor.
Nas listas de grandes filmes da história do cinema, "Pulp Fiction" sempre ocupa uma posição honrosa. Além dos prêmios em festivais é um dos filmes preservados pela Biblioteca do Congresso norte-americano, por sua significância cultural, histórica e estética. É o oitavo filme mais bem avaliado do IMDB e eu certamente o incluiria em uma lista de melhores filmes que já assisti. Filmado em 1994, o filme paradoxalmente resgata elementos do cinema clássico e ao mesmo tempo antecipa características do fazer cinematográfico contemporâneo. É uma obra de arte não apenas pelo seu conteúdo, mas pela forma como foi filmado, inteligentemente construído por um diretor-artista do cinema independente, muito firme em suas convicções estéticas e desapegado à produção "à demanda", mas sim pelo produto de sua criatividade. Tarantino é o grande contador de histórias do cinema contemporâneo e "Pulp Fiction" o maior testemunho de seu talento.
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