Antes de mais nada, é preciso alertar ao leitor do blog que "Vice" - filme indicado oito vezes ao Oscar de 2019 - é uma obra sobre a história política norte-americana. Embora seja focado na controversa figura de Dick Cheney, que foi vice-presidente dos Estados Unidos no governo de Bush, a estrutura do filme e a sua montagem vão além das nuances da vida particular de Cheney e abarcam um extenso período do jogo político em Washington, passando pelos mandatos de todos os presidentes norte-americanos desde Nixon. A narrativa de "Vice" é um pouco mais experimental do que filmes do gênero e a ironia é uma constante no roteiro, seja através dos diálogos dos personagens ou pela própria direção de Adam McKay, que se aproxima muito da linguagem documental de Michael Moore, embora o filme seja uma ficção baseada em acontecimentos reais.
Não dá pra falar de "Vice" sem destacar o trabalho de Christian Bale, o protagonista da história, que engordou uns vinte quilos para dar vida à Dick Cheney. Sua representação é incrível, bem como o trabalho de maquiagem que nos permite navegar na linha do tempo do personagem, ora magro, ora mais gordo, ora novo, ora mais velho. O mesmo acontece com Amy Adams, uma atriz fenomenal representando uma personagem forte, que não se resume ao papel de sombra do marido ou de "mulher por trás de um grande homem". O filme tem esse cuidado. Tanto Christian Bale quanto Amy Adams foram indicados ao Oscar por seus trabalhos, mas preciso confessar que o ator que mais me chamou a atenção na história foi Sam Rockwell (que ganhou o Óscar no ano passado), interpretando Bush em uma caracterização que nos faz acreditar que eles de fato são parecidos um com o outro, embora isso não seja verdade. O ator foi indicado ao Oscar de novo esse ano e eu não me surpreenderia se ele vencesse. Há outros bons trabalhos de elenco em "Vice", como o de Steve Carell e Tyler Perry (o único negro no filme, pelo que me lembro).
Um dos grandes objetivos de "Vice" é mostrar ao espectador que Dick Cheney não foi apenas um vice-presidente figurativo no governo de Bush, mas sim o mentor da política externa dos EUA no contexto pós 11 de setembro de 2001. A partir do filme, concluímos que foi Dick Cheney o responsável por criar mecanismos para que o governo injetasse na opinião pública estadunidense a ideia de que existia uma associação entre o regime de Saddam Hussein no Iraque a a Al-Qaeda, organização fundamentalista islâmica a quem os atentados de 2001 foram atribuídos. A partir dessa associação, o governo de Bush poderia tornar menos impopular a Guerra do Iraque, uma intervenção economicamente viável e estratégica para a exploração de petróleo na região. "Vice" não menospreza o seu espectador e, pelo contrário, superestima nossa capacidade de compreender a política dos Estados Unidos, de modo que a narrativa é por vezes muito pouco palatável para nós sentados na poltrona do cinema. Com certeza nos reconhecemos um pouco ignorantes ao assistir um filme com tanta informação.
Não deixa de ser incômodo percebermos que as decisões políticas mais importantes do início do século e que impactaram a vida de tantas pessoas - causando a morte de mais de 60.000 civis no Iraque, por exemplo - foram tomadas por homens sentados no conforto de seus gabinetes, comendo Donuts e agindo em favor de interesses pessoais acima da vontade coletiva dos norte-americanos. Neste sentido, a figura de Bush é até mesmo poupada, sendo ele representado como um homem inexperiente, inseguro e inconsequente. Há uma cena pós-crédito em "Vice" que parece um sketch de Saturday Night Live (programa que Adam McKay dirigiu, escreveu e atuou por muitos anos). Nesta curta cena, há uma referência a Trump, quando um apoiador do presidente se refere ao filme que acabamos de assistir como uma ferramenta da agenda liberal. É uma forma dos produtores anteciparem aos "haters" que sabem muito bem que produziram um filme essencialmente político e progressista. Esta metalinguagem faz da obra uma experiência bem diferente do que estamos acostumados, mesmo que não seja um primor no campo do entretenimento. Ainda assim, eu recomendo.
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