O filme mais importante da carreira do diretor Walter Salles nasceu a partir de um documentário que ele próprio realizou no ano de 1995, contando a história de uma presidiária baiana que escreveu uma carta pra o escultor polonês Frans Krajcberg. Comovido com o poder transformador de uma carta na vida de uma pessoa, Salles teve a ideia para "Central do Brasil", de 1998, uma das obras de arte do cinema universal e certamente o filme brasileiro que alcançou maior prestígio no exterior, vencedor de mais de 50 prêmios em festivais, incluindo o Globo de Ouro, o BAFTA e o Urso de Ouro em Berlim. O filme de Salles foi também a consagração de Fernanda Montenegro e o reconhecimento de seu trabalho primoroso em um filme cuja atuação da atriz é parte da essência e alma do roteiro. Quando Fernanda Montenegro sentou-se ao lado de Meryl Streep e Cate Blanchett na cerimônia do Oscar em 1999, boa parte dos brasileiros sabia que o trabalho da atriz brasileira que iniciou a carreira nas peças de teatro e novelas de Nelson Rodrigues havia sido mais consistente e maduro do que o de qualquer outra atriz no mundo naquele momento.
Filmado no Rio de Janeiro, o filme de Walter Salles retrata uma cidade diferente do glamour carioca a que as lentes cinematográficas costumam se apegar. A rotina de Dora, a protagonista que escreve cartas na estação Central do Brasil, é a mesma da maioria dos brasileiros pobres e habitantes da periferia das grandes cidades. A diferença é que Dora, contrariando as estatísticas do Brasil da década de 1990, sabe ler e escrever, utilizando seu talento para escrever cartas e dar voz aos analfabetos que diariamente passam pela caótica estação de trem do Rio de Janeiro. A câmera de Salles na estação segue o fluxo e o ritmo dos milhares de pedestres que passam pelo local todos os dias: vemos figuras reais e rostos verdadeiramente cansados do cotidiano de uma grande cidade. A opção por planos fechados e tomadas escondidas na estação é reveladora da perda de identidade a que os cidadãos cariocas são submetidos quando frequentam um local tão hostil ao ponto de um ladrão de rádio de pilha ser executado a sangue frio por guardas armados sem despertar nenhum espanto dos transeuntes.
Naturalmente, dois personagens na estação ganham destaque na história. Quando Dora encontra o pequeno garoto Josué vivendo como um órfão desprotegido, o seu coração sofre algum tipo de sensibilização - ainda que sutil - ao ponto de convidá-lo para passar a noite em sua casa. Este é o momento em que o filme rompe os limites da inóspita estação Central do Brasil para que possamos acompanhar os protagonistas em uma pouco digna viagem de trem até o apartamento humilde de Dora. Em sua casa, conhecemos a protagonista a partir de sua relação com a colega vizinha, brilhantemente interpretada por uma dolorosamente saudosa Marília Pêra, em um espetáculo de atuação e improviso que faz brilhar os olhos dos espectadores. Comovida com a história de Josué, que pretende encontrar o seu pai, Dora - ela própria uma mulher que cresceu longe da figura paterna - decide embarcar com o jovem em uma viagem à Bom Jesus do Norte, para entregar Josué a quem pudesse lhe criar. A decisão de Dora, no entanto, não é fruto de uma súbita guinada moral em seu caráter, mas sim uma daquelas atitudes tomadas com a completa incerteza de algum sucesso.
Mais uma vez o filme sofre uma transformação. Da estação de trem à casa de Dora e depois à uma viagem pouco programada pelo interior do Brasil até os confins do sertão do Recife. A história se torna um road movie cujo maior triunfo é o incrível aprofundamento da relação entre Josué e Dora e a gradual e invisível modificação do comportamento desta última, que de uma senhora rude e grosseira se torna naturalmente uma companheira de viagem com certa ternura e uma docilidade comovente. As câmeras de Salles sabem captar com precisão e naturalidade o interior do Brasil, retratando de forma humana os personagens que os protagonistas cruzam pelo caminho, como na cena em que Josué procura encontrar traços de paternalidade em um passageiro de ônibus, recebendo de Dora uma resposta bastante irônica ao demonstrar que quem verdadeiramente tinha "cara de pai" era um sujeito bêbado sentado ao seu lado. As situações encontradas pelos protagonistas são carregadas de senso de humor, mesmo que o humor de Dora e do próprio Josué sejam tão inconstantes quanto os episódios que enfrentam pelo caminho.
É possível notar com clareza como a atmosfera do filme se modifica conforme Dora e Josué avançam para o sertão do Brasil. Os ambientes, os cenários e as personagens tornam-se mais humildes, por vezes ingênuos. Esta imersão pelo interior do país é coincidente com o afloramento da personalidade gentil de Dora e a afeição que surge entre ela e o jovem Josué. A trilha sonora contribuiu para a dilaceração do espírito do espectador, aliada a uma fotografia que literalmente nos faz sentir o coração dentro da boca. "Central do Brasil" possui um grande poder de comoção, mesmo que em nenhum momento sequer da história lance mão de sentimentalismo ou obviedades em sua narrativa. A sutileza do roteiro se encontra em momentos mágicos como na cena em que Dora, estimulada por um flerte com um caminhoneiro que lhe dá carona, vai ao banheiro, arruma os cabelos e passa o restinho do batom de uma moça que acabou de conhecer. Quando retorna, encontra a mesa onde o caminhoneiro estava vazia. A cadência da cena aliada à atuação magistral de Fernanda são suficientes para nos deixar tão magoados quanto a própria personagem deve ter ficado naquele momento.
Naturalmente, dois personagens na estação ganham destaque na história. Quando Dora encontra o pequeno garoto Josué vivendo como um órfão desprotegido, o seu coração sofre algum tipo de sensibilização - ainda que sutil - ao ponto de convidá-lo para passar a noite em sua casa. Este é o momento em que o filme rompe os limites da inóspita estação Central do Brasil para que possamos acompanhar os protagonistas em uma pouco digna viagem de trem até o apartamento humilde de Dora. Em sua casa, conhecemos a protagonista a partir de sua relação com a colega vizinha, brilhantemente interpretada por uma dolorosamente saudosa Marília Pêra, em um espetáculo de atuação e improviso que faz brilhar os olhos dos espectadores. Comovida com a história de Josué, que pretende encontrar o seu pai, Dora - ela própria uma mulher que cresceu longe da figura paterna - decide embarcar com o jovem em uma viagem à Bom Jesus do Norte, para entregar Josué a quem pudesse lhe criar. A decisão de Dora, no entanto, não é fruto de uma súbita guinada moral em seu caráter, mas sim uma daquelas atitudes tomadas com a completa incerteza de algum sucesso.
Mais uma vez o filme sofre uma transformação. Da estação de trem à casa de Dora e depois à uma viagem pouco programada pelo interior do Brasil até os confins do sertão do Recife. A história se torna um road movie cujo maior triunfo é o incrível aprofundamento da relação entre Josué e Dora e a gradual e invisível modificação do comportamento desta última, que de uma senhora rude e grosseira se torna naturalmente uma companheira de viagem com certa ternura e uma docilidade comovente. As câmeras de Salles sabem captar com precisão e naturalidade o interior do Brasil, retratando de forma humana os personagens que os protagonistas cruzam pelo caminho, como na cena em que Josué procura encontrar traços de paternalidade em um passageiro de ônibus, recebendo de Dora uma resposta bastante irônica ao demonstrar que quem verdadeiramente tinha "cara de pai" era um sujeito bêbado sentado ao seu lado. As situações encontradas pelos protagonistas são carregadas de senso de humor, mesmo que o humor de Dora e do próprio Josué sejam tão inconstantes quanto os episódios que enfrentam pelo caminho.
É possível notar com clareza como a atmosfera do filme se modifica conforme Dora e Josué avançam para o sertão do Brasil. Os ambientes, os cenários e as personagens tornam-se mais humildes, por vezes ingênuos. Esta imersão pelo interior do país é coincidente com o afloramento da personalidade gentil de Dora e a afeição que surge entre ela e o jovem Josué. A trilha sonora contribuiu para a dilaceração do espírito do espectador, aliada a uma fotografia que literalmente nos faz sentir o coração dentro da boca. "Central do Brasil" possui um grande poder de comoção, mesmo que em nenhum momento sequer da história lance mão de sentimentalismo ou obviedades em sua narrativa. A sutileza do roteiro se encontra em momentos mágicos como na cena em que Dora, estimulada por um flerte com um caminhoneiro que lhe dá carona, vai ao banheiro, arruma os cabelos e passa o restinho do batom de uma moça que acabou de conhecer. Quando retorna, encontra a mesa onde o caminhoneiro estava vazia. A cadência da cena aliada à atuação magistral de Fernanda são suficientes para nos deixar tão magoados quanto a própria personagem deve ter ficado naquele momento.
Falar de "Central do Brasil" é falar sobre a realidade epidêmica do abandono paterno no país, que assola não só Josué, mas também Dora, porque ambos são pobres. Existe um compromisso social na história, que não é evidenciado através de mensagens explícitas, mas das situações enfrentadas por seus protagonistas. O pai de Dora, por exemplo, passou tanto tempo sem vê-la que chegou a confundi-la com uma ex-namorada. Josué sequer se lembra do rosto do pai. O road movie de Walter Salles é uma navalha afiada no peito de seus espectadores, pois transmite com sinceridade o drama tão verdadeiro e provável de seus personagens principais. O maior poder de "Central do Brasil" é ferir com a leveza necessária o coração de seu público, como se precisasse nos mostrar o sangue em nossas veias para convencer-nos da própria humanidade. O poder da atuação de Fernanda Montenegro e de Vinicius de Oliveira, somados ao talento profundamente humano de Walter Salles para caracterizar o Brasil e o brasileiro fazem desse filme não apenas uma obra de arte do cinema nacional, mas um dos registros mais poderosos do cinema como um todo, em patamares tão elevados quanto as obras que fundaram a sétima arte contemporânea.
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