Jordan Peele é um relativamente jovem cineasta norte-americano que alcançou fama internacional com o filme "Corra!" em 2017, um sucesso de crítica e bilheteria coroado com a estatueta de melhor roteiro original no Oscar de 2018. No ano passado, Jordan co-produziu o excelente "Infiltrado na Klan", dirigido por Spike Lee, conquistando mais uma vez muito sucesso em um filme indicado ao Oscar e que também venceu na categoria de melhor roteiro, só que desta vez adaptado e não-escrito por Peele. Estas duas obras eram até o momento as mais importantes de seu currículo e ambas foram comentadas aqui no blog com críticas muito positivas. Em 2019, Jordan Peele voltou a fazer barulho com o terror "Nós", uma nova promessa de filme de horror com pegada inteligente e direção sofisticada, nos rastros de "Corra!". Mas o efeito não foi o mesmo.
Logo que comecei a assistir "Nós", em uma sessão absolutamente abarrotada de gente, percebi que o talento de Peele como contador de histórias talvez tenha sido um pouco superestimado. Eu acredito que se eu decidisse rever "Corra!" poderia ter uma impressão negativa desta vez, porque quando vi o filme as expectativas eram baixas, afinal o hype era baixo. Vou tentar explicar: quando "Corra!" estreou nos cinemas de Juiz de Fora em 2017, as grandes salas dos shoppings da cidade não tiveram muito interesse no filme. Quem assistiu o primeiro trabalho de Peele em JF viu no cinema Palace, em sessões bem noturnas e com pouca gente na plateia. A situação hoje mudou muito. O cinema Palace nem existe mais e o UCI é quem comprou o hype de "Nós", fazendo crescer em mim a expectativa de um bom filme, dirigido por um vencedor de Oscar e com Lupita Nyong'o no elenco. Vendo as primeiras tomadas de Peele nos contando a história a partir da perspectiva de uma jovem criança com uma camisa que faz referência ao disco mais importante de Michael Jackson, senti que o roteiro caminhava para uma trilha muito pueril, precisando a todo momento se ancorar em referências pouco originais e em um humor que esquenta tão devagar quanto um ferro de passar roupa com defeito.
Para não falar do filme sem estragar nenhuma surpresa, me limito a dizer que as metáforas de "Nós" não são absolutamente claras e as saídas encontradas pelo diretor-roteirista estão muito longe da racionalidade de "Corra!". Mesmo que a premissa do primeiro filme de Peele seja bizarra e surreal, existe uma explicação razoável dentro da crítica ao racismo contida no filme, um esclarecimento inteligente e coerente. Em "Nós" é muito mais difícil encontrar até mesmo certa sobriedade na narrativa que esclarece ao espectador o que está acontecendo, porque o terceiro ato é uma sucessão de erros aliada a uma história pouco convincente e muito mais extensa do que poderia ser. É claro que o público mais atento conseguirá enxergar no texto de Peele sacadas diretas à escravidão, o humor auto-referencial dos negros e até mesmo críticas explícitas ao comportamento norte-americano, mas essas críticas não estão tão conectadas ao mote do filme como ocorreu em "Corra!". Sabendo que Peele filmou "Nós", ficamos aguardando algo mais do que a mera contemplação do gênero horror ou a expectativa de um plot twist a la Shyamalan. Aliás, o plot twist existe e chega tão tarde quanto a ajuda para o Titanic, quando o barco de Jordan Peele já havia afundado mesmo no segundo ato.
E não me limito a criticar o filme somente no plano da narrativa e do roteiro, mas existe um outro ponto muito sensível que é preciso que seja dito: a violência extrema da obra. Eu francamente acredito que muito em breve a crítica do "politicamente correto" seja ainda mais enfaticamente dirigida à violência em obras de entretenimento. E estou totalmente ao lado do que seja dito como politicamente correto, pois não acredito na violência gratuita como objeto comercial, seja em filmes, quadrinhos ou jogos de vídeo-game. E Jordan Peele usa e abusa da violência em seu filme. Muitos irão dizer que era isso o que se esperava de um filme de terror, mas sinceramente não me lembro de uma cena sangrenta em "O Exorcista" ou "O Bebê de Rosemary", clássicos do gênero. Outros irão dizer que a mensagem de Peele não poderia ser transmitida sem expor com clareza de detalhes a violência doméstica e familiar da obra. Bom, o que acredito é que o filme faz um uso extrapolado de assassinatos brutais e relativiza o sofrimento de personagens agonizantes com diálogos bem humorados ou o som da música pop do The Beach Boys, muitas vezes mesclando com o horror da morte o elemento do humor, o que de certa forma já havia acontecido em "Corra!", mas de forma um pouco mais elegante. Em tempos de massacres e da banalização do mal, me reservo o direito de considerar "Nós" um filme de mau gosto.
Para finalizar, eu não poderia deixar de falar um pouco sobre o lugar de "Nós" no cinema de horror. É claro que se comparado com os slashers mais famosos do gênero o filme de Peele não deixa nada a dever a "Pânico", por exemplo. Há uma certa sofisticação na narrativa, na atuação de Lupita, nas referências ao horror de Stephen King, por exemplo, seja através do parque de diversões ou da referência às tubulações de esgoto, elemento importante em "It". Não dá pra deixar de lembrar também de Shyamalan, pelo roteiro intrincado e pela originalidade da história. Mas apesar de tudo isso, "Nós" parece ter surgido em um momento em que deveria ser pouco propícia a proliferação de filmes com natureza tão brutal. Digo isso correndo o risco de soar moralista ou de adepto de uma hipocrisia de quem um dia viu com deleite os filmes de Tarantino no cinema. É que as pessoas mudam, os tempos mudam e o cinema muda. "Nós" é um registro bastante extemporâneo de sua categoria de filme, e digo isso no sentido negativo, porque Peele usou uma forma original e inovadora de abordar uma temática que, apesar disso tudo, deveria ter permanecido presa ao passado do cinema splatter.
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