"Deixando Neverland" é um documentário de 2019 que foi ao ar na HBO dividido em duas partes, somando ao todo quase quatro horas de filme. O título faz referência à "terra do nunca", nome dado ao rancho do cantor Michael Jackson e que segundo o relato de algumas crianças teria sido o palco de casos de abusos sexuais reiterados cometidos pelo artista ao longo da década de 1990. O nome do documentário sugere muitas interpretações, dentre elas a quebra da fantasia que existe em torno de Michael Jackson até o momento em que as suas supostas práticas pedófilas finalmente vieram à tona e deixaram o espaço íntimo e privado do rancho. Ironicamente, a sua "terra do nunca", batizada como referência à peça teatral "Peter Pan", foi um local construído justamente para que o cantor pudesse viver e levar a outras pessoas a experiência de poder nunca amadurecer, tendo sido durante a década de 90 um espaço muito frequentado por crianças, algumas vezes desacompanhadas de seus pais.
O documentário, tão logo foi lançado, teve grande repercussão na imprensa e na opinião pública, dividindo aqueles que acreditam ou não na inocência de MJ. A verdade é que o artista foi absolvido das acusações de abuso infantil todas as vezes que precisou comparecer diante dos tribunais, de modo que o filme da HBO trouxe à tona uma discussão interessante sobre o quão justo seria condenar alguém morto por algo que foi inocentado quando vivo. Mas o documentário parte do pressuposto de que Michael Jackson foi beneficiado nos tribunais por depoimentos falsos de dois jovens muito próximos a eles que, por razões semelhantes, tiveram motivos para protegê-lo diante do juri a que foi levado em 2008. Estes homens são Wade Robson e James Safechuck, as duas personagens-chave do filme da HBO, que se baseia quase exclusivamente em suas alegações e de seus familiares para construir a narrativa que nos apresenta MJ não como um ídolo pop ou uma lenda, mas sim um homem de comportamento doentio que julgava normal se apaixonar e transar com crianças.
Os depoimentos de Wade e James são chocantes, não porque buscam demonizar a figura de Michael Jackson ou julgá-lo por seu comportamento criminoso, mas sim porque narram a sua história com o artista de maneira absolutamente natural e até mesmo romântica, destacando os elementos mais bonitos e doces de sua amizade com o ídolo, até que aos poucos a relação entre artista e fã avança para algo doentio e perturbador. A todo momento, somos convencidos pelos relatos das vítimas que MJ acreditava ser natural namorar crianças de 7 anos de idade e viver com elas uma história de amor semelhante ao que ele poderia ter tido com uma pessoa adulta, dormindo juntos, viajando e comprando jóias. Ao mesmo tempo, o documentário apresenta as histórias sob as perspectivas dos familiares, especialmente as mães de Wade e James, que estiveram ao lado dos filhos durante todo o período em que foram abusados sem aparentemente desconfiar que algo estranho estivesse acontecendo. Os depoimentos das vítimas são complementados com farto material em vídeo, fotos, além de gravações e outros elementos que dão sustentação material ao que está sendo dito nas telas.
Não há em "Deixando Neverland" espaço para o contraditório. O documentário não tem a pretensão de ouvir os diferentes lados dos supostos abusos cometidos por Michael Jackson. O que o filme procura mostrar a todo momento, com um grande reforço de sua trilha sonora e fotografia, é o relato comovente de Wade e James ao tomarem consciência da importância de dizer a verdade sobre as suas histórias. Isto ocorreu quando cada um deles se tornou pai de uma criança e percebeu que em outras circunstâncias elas também poderiam ter sido vítimas de abusos assim como havia ocorrido com eles. Ambos sabiam que este tipo de violência ocorre no âmbito familiar, de maneira silenciosa e travestida de carinho, de cuidado e de amor. Eles viveram isso com Michael Jackson mas preferiram durante muitos anos negar o crime cometido pelo artista, com medo de que isso pudesse prejudicá-lo e também arruinasse suas próprias vidas e carreiras. Por isso, Wade e James permaneceram calados enquanto o artista viveu, até que o documentário da HBO deu voz as suas histórias e a oportunidade para que o espectador decida se quer ou não acreditar em seus relatos.
Muita gente acreditou em Wade e James e a repercussão foi muito negativa para a imagem de Michael Jackson, que já era muito desgastada até sofrer um revés após sua morte em 2009, quando o cantor foi transformado em lenda. Muitas rádios removeram músicas de Michael Jackson de suas playlists, um episódio dos Simpsons com participação do cantor foi retirado do ar e o próprio Quincy Jones (importante produtor que colaborou com Jackson durante longo tempo de sua carreira) optou por desassociar o nome do cantor de um show que ocorreria em Londres em junho deste ano. Por outro lado, cresceu a procura por MJ nas plataformas de streaming e até mesmo as vendas de produtos associados a sua marca. O documentário da HBO entrará certamente para a história por trazer a tona relatos comoventes praticamente desconhecidos sobre a vida dupla do artista pop norte-americano, relatos este proferidos por pessoas que comprovadamente estiveram durante longos anos envolvidos com o cantor e que poucas razões teriam para mentir sobre um assunto tão delicado. Boa parte da defesa de Michael Jackson se sustenta na alegação de que Wade e James apenas querem ganhar dinheiro sobre o artista, mas as cenas finais do documentário da HBO nos fazem refletir se seria mesmo este o interesse dos jovens. Acreditando ou não na culpa do cantor, não deixe de conhecer o outro lado da história de Michael Jackson para além de "This is It".
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