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terça-feira, 16 de julho de 2019

As Aventuras de Pi

Ang Lee é um dos diretores mais importantes e premiados de sua geração. Seu primeiro filme de maior sucesso foi "O Tigre e o Dragão", de 2000, que foi indicado ao Oscar em várias categorias (inclusive melhor filme) e venceu como melhor filme estrangeiro, a exemplo do que aconteceu com "Roma", de Alfonso Cuarón, em 2019. Em 2005, Ang Lee mais uma vez ganhou muito reconhecimento por "O Segredo de Brokeback Mountain", quando recebeu pela primeira vez o Oscar de melhor diretor, feito que se repetiu em sua obra de 2012: "As Aventuras de Pi". Ang Lee nasceu em Taiwan e se radicou nos Estados Unidos. É difícil classificar a sua obra dentro de um cinema autoral - porque é um cineasta muito versátil - mas os elementos asiáticos costumam ser uma certa constante na temática de seus roteiros.

Em "As Aventuras de Pi" acompanhamos a história de um jovem indiano (Pi) cujo pai é proprietário de uma grande quantidade de animais selvagens que vivem em um zoológico. O pai decide migrar com a família para o Canadá, onde pretende vender os animais e começar uma nova vida. Mas no meio da viagem o navio onde está a família do jovem (com todos os animais no porão, como em uma espécie de arca de Noé) naufraga, deixando apenas um sobrevivente entre os humanos: o jovem Pi. Ele sobrevive em um bote salva-vidas, acompanhado de uma hiena feroz, uma Zebra com a perna quebrada e um simpático macaco, os dois últimos devorados pela hiena. Com pouco tempo à deriva no mar, Pi descobre que tem em seu pequeno bote a companhia de um tigre adulto, que estava camuflado sob a lona do barco. O animal curiosamente se chama Richard Parker e tem um comportamento selvagem e instintivo, como é comum em um animal deste tipo. 

O prólogo do filme aborda algumas questões atinentes à vida religiosa do protagonista, porque ele aparentemente não consegue se decidir sobre qual crença seguir. Pi tem grande dificuldade em compreender como o catolicismo pode naturalizar o sacrifício de alguém inocente a pagar por todos os pecadores, mas mesmo assim ele avisa ao pai que quer se batizar na igreja cristã. O pai lhe responde que quem acredita em muitas religiões acaba por não ter fé em nenhuma delas, uma resposta que mais tarde é confrontada pela opinião do filho adulto. O elemento divino retorna em outros momentos na história, mas com certeza umas das referências mais fortes da história é a própria arca de Noé, mesmo que apenas como uma metáfora divertida e sincretizada com o hinduísmo de Pi. A questão da natureza, como uma criação de Deus e a sacralização e humanização de Richard Parker também são pontos interessantes na abordagem do roteiro, que a todo momento insiste no caráter grandioso, temível e imbatível do mar e do tempo na vida dos dois protagonistas. O homem e o tigre estão o tempo todo à mercê dos fenômenos naturais e da compaixão de algum deus que estivesse olhando por eles no meio do oceano pacifico. É de se supor que Pi esperasse algum milagre e apelasse aos céus para sair daquela situação.

Poucos filmes contam uma história com tão poucos personagens e em um ambiente tão restrito como um barco. Me lembro de uma história semelhante no bem antigo "Um Barco e Nove Destinos", de 1944, dirigido por Alfred Hitchcock. A diferença é que no filme da década de 40 há uma quantidade maior de náufragos e a abordagem das conturbadas relações humanas no bote em que todos estão aprisionados até que sejam socorridos. Em "A Vida de Pi" temos uma relação dificultosa entre o homem e um tigre selvagem, o que deve ter dado um imenso trabalho para Ang Lee ao dirigir um filme tão repleto de computação gráfica, porque muito provavelmente ninguém na equipe de filmagens precisou em algum momento chegar perto de um tigre de verdade. Creio que a vitória de Ang Lee no Oscar como melhor diretor tenha vindo do reconhecimento do trabalho do cineasta ao criar um filme muito prazeroso de ser assistido tendo como ferramenta de trabalho pouco material real e concreto além da atuação do protagonista (o ator Suraj Sharma). Este tipo de trabalho e seu reconhecimento mais uma vez me lembra de Cuarón, só que desta vez em "Gravidade", de 2014.

Ao assistir "As Aventuras de Pi", tenha em mente que está diante de um filme fantástico, uma obra em que roteiro e direção se permitem passear pelo caminho do surreal, do mágico e do abstrato. A própria conclusão do filme questiona a realidade de tudo que vimos diante de nossos olhos, até porque somente Pi foi testemunha de tudo o que viveu. Esta conclusão inclusive é o link da aventura de Pi e toda a religiosidade abordada no prólogo, porque o protagonista já adulto diz que não interessa o que de fato ocorreu com ele, já que os meios não alterariam a veracidade de fatos maiores como o naufrágio do navio e a perda de sua família. Para Pi, isto seria algo semelhante à ideia da religião, em que não importando qual dos milhões de deuses existentes seja escolhido, o caminho para a salvação e o conhecimento é sempre o mesmo. "As Aventuras de Pi" é um bonito filme sobre a universalidade de Deus e grandiosidade da natureza, além de um tratado sobre o caráter humano de nossa espécie quando sabe demonstrar empatia pelos animais.

Um comentário:

  1. Achei interessantíssima sua análise! Vi o filme sem dar a devida atenção e não me prendeu muito, pois logo me desagradou, mas essa sua análise me despertou uma segunda chance.

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