Páginas

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Isto Não é um Filme

Jafar Panahi é um dos cineastas mais importantes do Irã, país governado desde 1979 por um sistema que mescla democracia parlamentar com uma teocracia cujo líder supremo é o mesmo desde 1989. Fiz esta devida introdução sobre o que é o Irã pois preciso dizer que Jafar tem sido perseguido pelas autoridades iranianas desde o início da sua carreira, uma vez que neste país o fundamentalismo religioso censura e processa intelectuais que se manifestem de alguma maneira contra o regime semi-ditatorial. Não só os intelectuais de qualquer gênero são vítimas de atrocidades humanas e políticas, mas principalmente mulheres - independentemente de posicionamento político - presas, condenadas e até mesmo mortas pela institucionalização do machismo, muito perceptível  e didaticamente explicado na animação "Persépolis" (2008).

Mas Jafar Panahi, a despeito da censura do país em que vive, acumulou muitos prêmios em sua carreira sem necessariamente precisar sair do Irã. O cineasta já venceu prêmios no Festival de Cannes, Festival de Veneza e tem até mesmo um Urso de Ouro do Festival de Berlim, que é com certeza um dos maiores prestígios que um diretor de cinema pode ganhar na carreira. Acontece que em dezembro de 2010 Jafar recebeu uma péssima notícia: ele foi condenado a seis anos de prisão e proibido durante 20 anos de dirigir filmes, escrever roteiros, dar entrevistas e deixar o seu país (exceto para peregrinação religiosa ou atendimento médico). Tratava-se de uma condenação política com pouca possibilidade de reversão e, diante desse quadro, Jafar decidiu ligar a câmera de seu iPhone e mostrar um pouco a sua rotina no apartamento que vive em Teerã. Assim nasceu "Isto Não é um Filme", lançado em 2011.

O filme não possui roteiro pré-escrito. Isso fica muito claro para o espectador, que não faz ideia do que vai assistir justamente porque o próprio protagonista também não sabe o que vai fazer e falar. A primeira tomada mostra Jafar ligando para um amigo, o também cineasta Mojtaba Mirtahmasb, a quem Jafar solicita que vá ao seu apartamento para filmá-lo fazendo algo que acabou de ter a ideia. Nós então acompanhamos a rotina de Jafar, praticamente preso em seu bonito apartamento, onde vive cercado de filmes, fuma cigarros, toma chá e tem a companhia de um lagarto de estimação. Um dos momentos mais tocantes é quando Jafar decide ler para os espectadores a história de um dos seus roteiros que foi censurado pelo governo iraniano e que pode, portanto, nunca ser realizado. O diretor traça um quadrado sobre o seu tapete persa e decide interpretar um pouco da história que ele mesmo escreveu, até que em um certo momento ele se mostra visivelmente incomodado e interrompe sua ação falando: "se podemos ler um filme, então por que fazê-lo?"

O roteiro não escrito de "Isto Não é um Filme" sofre então uma reviravolta, porque Jafar de novo está diante de um impasse sobre o que fazer. Desesperado ele tenta encontrar assuntos pra seu próprio filme, que a rigor não poderia ser um filme diante de sua recente condenação. A história ganha uma certa dramaticidade por se passar no dia do ano-novo e ouvimos a todo momento barulhos e vemos luzes de fogos pelas janelas. Jafar quer que nós espectadores passemos pela mesma angústia que ele diante de sua impossibilidade de dar asas a sua criatividade que lhe permitiu tanto sucesso como diretor. Vemos em sua obra o desespero de um cineasta por produzir, mesmo que impedido pelo governo. Durante 77 minutos, Jafar não sabe ao certo o que fazer com a câmera, ao ponto de descer pelo elevador do prédio acompanhando um jovem zelador que recolhe os lixos nos apartamentos. Ao concluir a sua história de maneira sufocante, Jafar editou o vídeo, inseriu em um cartão de memória devidamente camuflado dentro de um bolo e enviou para a França, onde foi exibido no Festival de Cannes. Seja ou não um filme, foi aquilo que Jafar Panahi conseguiu fazer diante da realidade política de seu país. A despeito de sua condenação, o diretor continua produzindo e neste ano venceu outro prêmio em Cannes por seu último filme, "3 faces". 

Nenhum comentário:

Postar um comentário