Páginas

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Blade Runner

"Blade Runner", de 1982, é um dos filmes de ficção científica mais importantes da história do cinema. O filme foi dirigido por Ridley Scott, mesmo diretor de "Alien" (1979) e "Gladiador", sua obra mais premiada e vencedora do Oscar de 2001. No Brasil, o filme ganhou um subtítulo que nada mais é do que uma tradução da expressão "blade runner" no contexto da obra, ou seja, "caçador de androides". O roteiro do filme foi baseado no livro "Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?", publicado em 1968 pelo mais importante escritor de ficção científica dos Estados Unidos no século XX: Philip K. Dick, a quem "Blade Runner" deve muito o status cult que possui hoje, bem como o reconhecimento da crítica e dos fãs como uma obra-prima do gênero.

É preciso falar um pouco do romance original de Philip K. Dick antes de abordar o filme de Scott, porque a ideia do livro de Dick é absolutamente fantástica e original. O livro que inspirou "Blade Runner" conta a história de um planeta Terra pós alguma grande guerra mundial que transformou o mundo em um local inóspito e muito contaminado por radiação. Quase toda a população migrou para colônias em outros planetas e ficaram por aqui somente aqueles que não quiseram ir por conta própria ou porque já estavam doentes e não puderam exilar-se. O fio condutor da narrativa é a perseguição de um grupo de androides por um caçador de recompensas, Rick Deckard, mas a grande discussão que Dick quer fazer no livro é de ordem filosófica, afinal de contas desde o título do romance até a sua última linha o escritor questiona se androides são dignos de empatia como os seres humanos e se existe neles algum tipo de humanidade que os daria direitos individuais como uma pessoa de verdade possui.

Seria fugir do foco do blog comentar em detalhes o livro de Philip K. Dick, até porque a adaptação para o cinema destoa bastante dos objetivos de cunho filosófico do escritor em seu romance original. A obra de Ridley Scott busca levar para as telas a concepção de futuro de Dick e o enredo principal de Deckard (interpretado por Harrison Ford) como um herói que combate androides assassinos e sem coração no planeta terra. Adaptando-se às convenções de Hollywood, "Blade Runner" tem um protagonista charmoso e durão e toda a história se desenvolve em uma metrópole que poderia ser Hong Kong ou Nova York em um futuro bem distante, com carros voadores, zeppelins e letreiros enormes. É curioso que na adaptação para o cinema, por uma decisão estética, o cenário de "Blade Runner" tenha se tornado um planeta de visual futurista bastante glamouroso, ao contrário da desolação, poeira e abandono do livro original de Dick. Mesmo assim, o escritor norte-americano, que morreu meses antes do lançamento do filme em 1982, havia se mostrado bastante empolgado com a prévia que viu do filme, revelando que a direção de arte do longa havia captado a essência de seu livro.

Ridley Scott fez muitas adaptações para transformar "Blade Runner" em uma experiência visual digna dos filmes de ficção científica que se fazia à época, especialmente o bem sucedido "Star Wars", de George Lucas, a quem o filme de Scott tomou emprestado até um de seus protagonistas. Se Scott optasse por uma representação futurista distópica de um mundo desolado, provavelmente teria feito algo semelhante à "Mad Max", mas, pelo contrário, o mundo de "Blade Runner" é um verdadeiro exemplo do que conhecemos como o estilo "cyberpunk", que é basicamente uma tendência a retratar o futuro como um ambiente em que a evolução tecnológica não necessariamente provocou a melhora na qualidade de vida das pessoas. Os protagonistas de filmes do gênero "cyberpunk" são figuras solitárias e angustiadas com a sociedade opressora em que vivem, pouco apegados ao materialismo e consumismo que os cerca, ainda que eventualmente possam ser vítimas deles.

Se pensarmos na perspectiva do mérito da adaptação do romance, seria injusto comparar o filme de Ridley Scott com o livro de Dick, porque Philip K. Dick perspicazmente criou uma narrativa de ação clichê ao estilo "polícia e ladrão" entre caçador e androides para na verdade abordar pelas beiradas uma inteligente discussão filosófica e também religiosa sobre a empatia dos seres humanos e de robôs feitos à imagem e semelhança de seus criadores. O roteiro do filme, buscando obviamente entreter o público e gerar uma receita maior do que as despesas, enxugou a profundidade do livro e aproveitou justamente o conflito entre Deckard e os androides, especialmente Roy Batty (o mais forte deles). Se a história principal é demasiadamente simples, o filme compensou em sua identidade gráfica, nos efeitos visuais e em sua rica trilha sonora repleta de sons feitos por sintetizadores de timbre futurista.

Como uma espécie de reconhecimento da genialidade de Dick, a última cena do filme se dá ao trabalho de abordar, mesmo que brevemente, o quão insignificantes podem ser as lembranças e as vivências quando apagadas e esquecidas, diluídas para sempre no tempo como lágrimas se perdem no meio da chuva. E ao fazer essa discussão sair da boca de um androide, o próprio filme nos ajuda a compreender se existe alguma humanidade no personagem e, consequentemente, empatia dos espectadores em relação ao seu trágico desfecho. Uma sacada de mestre. Assistam "Blade Runner"!

Nenhum comentário:

Postar um comentário