"Blade Runner", de 1982, é um dos filmes de ficção científica mais importantes da história do cinema. O filme foi dirigido por Ridley Scott, mesmo diretor de "Alien" (1979) e "Gladiador", sua obra mais premiada e vencedora do Oscar de 2001. No Brasil, o filme ganhou um subtítulo que nada mais é do que uma tradução da expressão "blade runner" no contexto da obra, ou seja, "caçador de androides". O roteiro do filme foi baseado no livro "Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?", publicado em 1968 pelo mais importante escritor de ficção científica dos Estados Unidos no século XX: Philip K. Dick, a quem "Blade Runner" deve muito o status cult que possui hoje, bem como o reconhecimento da crítica e dos fãs como uma obra-prima do gênero.
É preciso falar um pouco do romance original de Philip K. Dick antes de abordar o filme de Scott, porque a ideia do livro de Dick é absolutamente fantástica e original. O livro que inspirou "Blade Runner" conta a história de um planeta Terra pós alguma grande guerra mundial que transformou o mundo em um local inóspito e muito contaminado por radiação. Quase toda a população migrou para colônias em outros planetas e ficaram por aqui somente aqueles que não quiseram ir por conta própria ou porque já estavam doentes e não puderam exilar-se. O fio condutor da narrativa é a perseguição de um grupo de androides por um caçador de recompensas, Rick Deckard, mas a grande discussão que Dick quer fazer no livro é de ordem filosófica, afinal de contas desde o título do romance até a sua última linha o escritor questiona se androides são dignos de empatia como os seres humanos e se existe neles algum tipo de humanidade que os daria direitos individuais como uma pessoa de verdade possui.
Seria fugir do foco do blog comentar em detalhes o livro de Philip K. Dick, até porque a adaptação para o cinema destoa bastante dos objetivos de cunho filosófico do escritor em seu romance original. A obra de Ridley Scott busca levar para as telas a concepção de futuro de Dick e o enredo principal de Deckard (interpretado por Harrison Ford) como um herói que combate androides assassinos e sem coração no planeta terra. Adaptando-se às convenções de Hollywood, "Blade Runner" tem um protagonista charmoso e durão e toda a história se desenvolve em uma metrópole que poderia ser Hong Kong ou Nova York em um futuro bem distante, com carros voadores, zeppelins e letreiros enormes. É curioso que na adaptação para o cinema, por uma decisão estética, o cenário de "Blade Runner" tenha se tornado um planeta de visual futurista bastante glamouroso, ao contrário da desolação, poeira e abandono do livro original de Dick. Mesmo assim, o escritor norte-americano, que morreu meses antes do lançamento do filme em 1982, havia se mostrado bastante empolgado com a prévia que viu do filme, revelando que a direção de arte do longa havia captado a essência de seu livro.
Ridley Scott fez muitas adaptações para transformar "Blade Runner" em uma experiência visual digna dos filmes de ficção científica que se fazia à época, especialmente o bem sucedido "Star Wars", de George Lucas, a quem o filme de Scott tomou emprestado até um de seus protagonistas. Se Scott optasse por uma representação futurista distópica de um mundo desolado, provavelmente teria feito algo semelhante à "Mad Max", mas, pelo contrário, o mundo de "Blade Runner" é um verdadeiro exemplo do que conhecemos como o estilo "cyberpunk", que é basicamente uma tendência a retratar o futuro como um ambiente em que a evolução tecnológica não necessariamente provocou a melhora na qualidade de vida das pessoas. Os protagonistas de filmes do gênero "cyberpunk" são figuras solitárias e angustiadas com a sociedade opressora em que vivem, pouco apegados ao materialismo e consumismo que os cerca, ainda que eventualmente possam ser vítimas deles.
Se pensarmos na perspectiva do mérito da adaptação do romance, seria injusto comparar o filme de Ridley Scott com o livro de Dick, porque Philip K. Dick perspicazmente criou uma narrativa de ação clichê ao estilo "polícia e ladrão" entre caçador e androides para na verdade abordar pelas beiradas uma inteligente discussão filosófica e também religiosa sobre a empatia dos seres humanos e de robôs feitos à imagem e semelhança de seus criadores. O roteiro do filme, buscando obviamente entreter o público e gerar uma receita maior do que as despesas, enxugou a profundidade do livro e aproveitou justamente o conflito entre Deckard e os androides, especialmente Roy Batty (o mais forte deles). Se a história principal é demasiadamente simples, o filme compensou em sua identidade gráfica, nos efeitos visuais e em sua rica trilha sonora repleta de sons feitos por sintetizadores de timbre futurista.
Como uma espécie de reconhecimento da genialidade de Dick, a última cena do filme se dá ao trabalho de abordar, mesmo que brevemente, o quão insignificantes podem ser as lembranças e as vivências quando apagadas e esquecidas, diluídas para sempre no tempo como lágrimas se perdem no meio da chuva. E ao fazer essa discussão sair da boca de um androide, o próprio filme nos ajuda a compreender se existe alguma humanidade no personagem e, consequentemente, empatia dos espectadores em relação ao seu trágico desfecho. Uma sacada de mestre. Assistam "Blade Runner"!
Como uma espécie de reconhecimento da genialidade de Dick, a última cena do filme se dá ao trabalho de abordar, mesmo que brevemente, o quão insignificantes podem ser as lembranças e as vivências quando apagadas e esquecidas, diluídas para sempre no tempo como lágrimas se perdem no meio da chuva. E ao fazer essa discussão sair da boca de um androide, o próprio filme nos ajuda a compreender se existe alguma humanidade no personagem e, consequentemente, empatia dos espectadores em relação ao seu trágico desfecho. Uma sacada de mestre. Assistam "Blade Runner"!
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