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domingo, 13 de outubro de 2019

Aquarius


Pra terminar de comentar todos os longas de Kleber Mendonça Filho, revi hoje "Aquarius", de 2016, filme que teve grande repercussão mundial e foi indicado à Palma de Ouro do Festival de Cannes, ocasião em que o diretor e parte do elenco do filme protestaram a favor de Dilma Rousseff e denunciaram para a comunidade internacional o golpe que havia ocorrido no Brasil naquele momento.

Eu já comentei sobre a postura política do diretor Kleber Mendonça Filho no post sobre "Bacurau", de modo que aqui somente preciso reforçar que "Aquarius" não foge à regra de suas outras obras e mais uma vez aborda um tema indubitavelmente político e importante de ser discutido: o avanço das construtoras de imóveis sobre o patrimônio "envelhecido" da cidade do Recife.

Sônia Braga interpreta Clara, uma mulher que não se rende à especulação imobiliária em sua cidade.

Mas o filme é muito mais do que a crítica do avanço da especulação imobiliária em uma grande cidade brasileira, já que o roteiro escolhe este tema como um pano de fundo para uma abordagem por vezes poética e filosófica da passagem do tempo, do adoecimento e do envelhecimento, tudo isso vivido pela protagonista Clara, interpretada por Sônia Braga. As cenas iniciais de "Aquarius" evocam a cidade do Recife do passado, em preto e branco, com menos prédios e carros, ao som da saudosista e melancólica música "Hoje", canção de Taiguara, um cantor ironicamente esquecido e apagado da história da MPB.

Seguindo mais uma vez a tripartição do roteiro, como havia feito em "O Som ao Redor", o diretor começa a contar a história de Clara a partir de sua juventude no fim da década de 1970, quando venceu um câncer de mama e celebrava a vida no apartamento de uma tia idosa, na praia de Boa Viagem. Enquanto todos comemoram no apartamento, a tia de Clara revive na memória momentos bastante eróticos passados naquela mesma sala, onde na juventude ela fez amor em cima do móvel que no presente os seus convidados se apoiam e depositam copos de refrigerante.

Os minutos iniciais do filme mostram ao público as raízes sentimentais e familiares que Clara possui com o seu apartamento.

No segundo ato do filme somos transportados no tempo para a rotina de Clara já idosa, viúva, com três filhos e netos. Ela herdou (ou comprou) o apartamento de sua tia na praia, o mesmo onde décadas atrás ela havia comemorado a sua cura do câncer, de modo que a câmera de Kleber Mendonça Filho nos mostra com clareza que alguns móveis daquela época permanecem no apartamento, como um piano de parede e o móvel sobre o qual a tia de Clara um dia transou.

Esta passagem do tempo na história é necessária porque nós espectadores precisamos compreender que a protagonista possui uma ligação afetiva com aquele apartamento, afinal de contas o mote principal de "Aquarius" é que Clara passa a ser constantemente importunada por uma construtora que precisa somente do seu apartamento para  ser dona de todo o prédio onde Clara mora. O projeto final da construtora é levantar no terreno do edifício um arranha-céu residencial, ideia que a protagonista abomina.

Clara descansa em sua rede enquanto ao fundo o empresário interpretado por Humberto Carrão tira fotos da fachada do edifício.

Clara resiste bravamente ao assédio da construtora, personificada no filme por um jovem empreendedor "que fez cursos nos Estados Unidos", interpretado pelo bom ator Humberto Carrão. É preciso dizer que essa disputa entre Clara e a construtora é por vezes retratada de maneira um tanto quanto maquiavélica e de certa forma pueril, ainda que nós espectadores irresistivelmente nos inclinemos para apoiar Clara e quase aplaudi-la, especialmente em uma cena muito interessante onde a protagonista coloca o jovem engenheiro em seu devido lugar.

Os artifícios encontrados pela construtora para pressionar Clara a vender o seu apartamento são um pouco dramatizados, conferindo à trama um elemento de mistério e suspense que o diretor parece gostar, principalmente pela sua técnica excêntrica de filmar planos abertos que se fecham gradualmente no rosto do personagens ou em algum objeto importante em cena (como na cena final). Vale a pena dizer que Kleber Mendonça Filho tem uma ambição exagerada em reproduzir alguns modismos do cinema de Quentin Tarantino, como filmar os pés de Sônia Braga em várias ocasiões ou reaproveitar excessivamente o elenco de seu outro filme, como se no Brasil só houvesse dez atores disponíveis no mercado.

A câmera de Kleber Mendonça Filho explora certo mistério na representação do prédio vazio e cobiçado, habitado somente por Clara.

Outro exemplo de tomada inteligente do diretor, como se desta vez ele estivesse na perspectiva dos empresários assediadores.

Buscando compor a sua personagem protagonista com maior complexidade, o roteiro aborda as suas relações familiares e também os dramas e angústias pessoais. A família de Clara é representada principalmente por sua filha Ana Paula (Maeve Jinkings, outra vez), que segundo as palavras da própria mãe não tem sangue correndo em suas veias. Ana Paula é retratada como uma personagem de comportamento calculista, pouco afetuosa, que acredita que vender o apartamento para a construtora seria um bom negócio.

Quando Clara visita o cemitério de Santo Amaro e assiste sem querer um corpo sendo exumado, nós espectadores somos lembrados que a protagonista da história um dia perecerá como o patrimônio histórico recifense que as construtoras desejam destruir, de modo que não é um bom prognóstico sabermos que Ana Paula, futura herdeira do cobiçado apartamento, pretende vendê-lo para a construtora. Neste sentido, "Aquarius", vai muito além da luta entre uma mulher idosa e o mercado imobiliário, mas  pretende abarcar um elemento ainda mais importante: a luta  de uma mulher pela preservação da memória e do afeto no seio de sua própria família.

A família de Clara é um elemento importante no filme. O sobrinho, de pensamento aberto, é mais próximo da avó do que Ana Paula é da mãe.

O fato de Clara ser uma sobrevivente do câncer de Mama é um componente ainda mais interessante na história, porque na perspectiva da luta por uma causa justa, a luta pela vida é certamente a mais árdua e compensadora. Por essa razão, há uma bonita cena em que Clara, muito bem interpretada por Sônia Braga, olha pela janela de seu apartamento, enxerga os trabalhadores da construtora que deseja o seu edifício e coloca sutilmente as mãos em seus cabelos pretos crescidos, que no passado foram perdidos no tratamento contra o câncer.

A doença também é abordada em um sonho da protagonista, quando ela percebe que uma de suas mamas sangrava por baixo da camisola. De maneira mais explícita, Clara diz no terceiro e último ato que está entregando um câncer para seus inimigos, fazendo referência ao plano que arquitetou para se vingar da construtora rival. Esta associação entre os engenheiros que invadem o seu prédio para destruí-lo e a doença que um dia Clara venceu é a metáfora mais inteligente de "Aquarius".

O filme vai além da metáfora política. Na cena acima, Clara contempla as lápides do cemitério recifense.

O filme possui também uma vertente de crítica social, como também acontece em "O Som ao Redor" e "Bacurau", mas de maneira rasa e pouco trabalhada no roteiro. A desigualdade social no Recife se manifesta principalmente quando Clara mostra ao sobrinho e sua namorada a divisão econômica do litoral de sua cidade, cujo limite entre a riqueza e a pobreza é um canal de esgoto.

A presença dos empregados negros no interior da casa dos personagens ricos também abriu uma brecha para que o roteiro trabalhasse o assunto da desigualdade, porém de forma muito ineficiente, dando a impressão de que o diretor e roteirista tenha se visto na obrigação de cumprir o compromisso de tocar no assunto do racismo, do preconceito e da desigualdade, mesmo que de maneira complementar à história principal. 

Clara e os filhos, no apartamento do Edifício Aquarius.

Kleber Mendonça Filho sabia que correria o risco de ser acusado de escrever um filme sobre o drama de uma mulher branca, rica e aposentada ameaçada por uma construtora cujos donos são igualmente pessoas brancas, só que mais ricas do que ela. Mas pra ser sincero, o filme realmente é a história de uma mulher branca e rica. Só que isso não desmerece a intenção política de "Aquarius", que é uma obra sobre a luta de uma mulher contra o aparentemente invencível avanço da modernidade, do apagar da história e da memória, que ela valentemente encara nos momentos finais da história.

As já célebres sublevações que fecham as obras de Kleber Mendonça Filho indicam que existe um caminho possível para os problemas enfrentados por seus protagonistas, mesmo que sempre através da rebelião. Curiosamente, vale a pena dizer que, após o sucesso do filme, o edifício usado como locação para o prédio onde Clara mora foi parcialmente protegido da especulação imobiliária por um caminho institucional, através da ação do poder público. Pode ser que haja esperança. Bom filme!

3 comentários:

  1. Algo me chamou mt atenção nesse filme. Além do enredo como um todo, a questão da especulação imobiliária é algo que me atraiu bastante, principalmente por fazer arquitetura. Mas, a relação da Clara com os homens depois de vencer o câncer de mama me tocou mais. A auto estima da mulher afetada pela perda de um seio, me fez lembrar meus próprios problemas de autoestima. Eu me reconheci em algumas cenas. Uma cena que mexeu muito comigo é a cena que ela sai da festa com um cara (ele que procurou ela) e eles estão no carro se pegando. Quando ele descobre que ela não tem um seio ele desiste de ficar com ela naquela noite. Ele tinha interesse nela, ele estava com tesão, e quando ele descobre a falta de um seio, ELA NÃO SERVE MAIS. No mês de consciência e combate ao câncer de mama que estamos, ver essa cena ilustrou muito bem as pesquisas que dizem que 70% dos homens abandonam as suas esposas durante/após o tratamento do câncer de mama.

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    1. É uma cena muito marcante mesmo essa do carro, e muito triste. Se em um relacionamento casual isso já é imperdoável imagina só em um casamento, quando uma pessoa deveria estar com a outra primordialmente por causa do amor!

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    2. Pois é, muito muito triste :(

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