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quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Coringa


Este é o primeiro filme inspirado em quadrinhos cujo protagonista não é um super-herói, mas sim o vilão de uma franquia. A franquia no caso é o universo do Batman, um dos heróis mais importantes da DC, que por sua vez tem como antagonista o vilão mais importante da marca: o Coringa. Pensando dessa forma, é bastante razoável que um filme sobre essa figura malévola e ao mesmo tempo cômica tenha se tornado objeto de atenção dos estúdios DC, ávidos por produzir algo com relevância cinematográfica desde os filmes do Batman dirigidos por Christopher Nolan.

Nos quadrinhos, o Coringa já havia recebido o seu devido destaque quando ganhou uma graphic novel pra chamar de sua, e diga-se de passagem que estamos falando de uma senhora novela, escrita por ninguém menos que Alan Moore: "Batman: a Piada Mortal", um quadrinho dedicado a contar a origem do Coringa.

Todos os coringas. Da esquerda para a direita: Jared Leto (2016), Jack Nicholson (1989), Joaquin Phoenix (2019), Heath Ledger (2008) e o coringa da série de TV dos anos 60, Cesar Romero.

Acontece que no cinema o filme dirigido por Todd Phillips não tem nada de "A Piada Mortal", e muito menos nada que chegue próximo da história real do vilão mais importante do Batman. "Coringa", um dos filmes mais comentados de 2019 é na realidade a história de um palhaço triste, um homem deficiente ridicularizado pela sociedade, injustiçado, que acaba cedendo à violência como alternativa para os seus problemas.

Exceto pelo fato da história se passar em Gotham City e envolver lamentavelmente o pai de Batman e sua família, não há mais nada no roteiro que justifique que a obra se chame "Coringa", porque definitivamente este não é um filme sobre o grande antagonista da DC. Ainda assim dá pra aproveitar o filme? Esta é uma pergunta difícil de ser respondida, principalmente porque se não fosse a forçada conexão com o homem morcego este seria apenas mais um filme sobre a decadência dos tipos humanos denominados incels.

Joaquin Phoenix em interpretação aclamada que lhe rendeu o seu primeiro Oscar.

Uma das referências mais claras de "Coringa" é o filme "Taxi Driver" (1976), de Martin Scorsese (já comentado aqui no blog), com citações bem óbvias em algumas tomadas da cidade-cenário da obra, que embora seja a fictícia Gotham City poderia ser a Nova York do filme de Scorsese. Esta homenagem ao clássico filme interpretado por De Niro (que não por acaso também está no elenco de "Coringa") me pareceu apenas mais um reforço da falta de originalidade da história do filme de Todd Phillips, que assim como a obra prima de Scorsese conta a história de um morador de metrópole e o avanço de sua decadência moral, o aprofundamento de sua depressão, o fracasso de seu relacionamento amoroso e, por fim, a sua transformação em um assassino.

O Coringa é o novo Travis e o seu filme uma releitura de "Taxi Driver" para o universo do Batman. A sensação que tenho é que a única singularidade nisso tudo é a absoluta bizarrice do roteiro em comparar pretensiosamente dois filmes inconciliáveis, sobretudo porque a ideia de Scorsese deixou de ser original em 1976. 

O filme presta algumas homenagens a "Taxi Driver", de Martin Scorsese. Na foto acima vemos o Coringa nos bastidores do talk show cujo apresentador é interpretado por Robert De Niro.

Mas nem tudo é ruim em "Coringa", até porque o seu protagonista é interpretado por Joaquin Phoenix, um dos grandes atores de seu tempo, que dá vida e empatia ao personagem, mesmo que seja imperdoável que um personagem como o Coringa seja representado da maneira como foi, como um homem injustiçado, adoecido, quase sempre estabanado que de um momento para o outro adquire autoconfiança, um bom manuseio de arma de fogo e requintes de crueldade ao assassinar ao vivo o âncora de um programa de entrevistas.

A alcunha do Coringa para os amantes dos quadrinhos é a de "palhaço do crime". No entanto, o vilão nunca foi um comediante de stand up frustrado e fracassado, que diante de sua revolta com o mundo decide assassinar pessoas por um instinto vingativo. O Coringa é e sempre foi um articulador que pratica os seus crimes movido sim pela sua psicopatia, mas com objetivos claros atrelados ao crime organizado, mesmo que demonstre cinismo pelo objeto de seus assaltos, roubos ou sequestros. Neste sentido, o Coringa de Jack Nicholson é exemplar. Um palhaço bem sucedido, não o contrário.

A caracterização do palhaço, com roupas e até maquiagem renovada, deu frescor ao personagem.

Mas já que o filme não é tão bom, vamos falar de algumas discussões interessantes que ele provoca, principalmente por politizar a figura do Coringa. Sim, o primeiro assassinato do palhaço é recebido pela sociedade civil como um ato político (porque as vítimas eram trabalhadoras da empresa da família Wayne). Ora, quer dizer então que no filme o Coringa é um herói? Sim! Pelo menos a imagem que a sociedade contestadora (os que vão às ruas) possuem do palhaço é a de um homem que assassina ricos e que portanto merece que seu rosto seja estampado nas máscaras usadas nos protestos por Gotham City (algo semelhante à máscara de V em "V de Vingança", de Alan Moore).

Embora esta seja uma pauta boa pra discutir o filme, esta tentativa de associar o Coringa a um símbolo de resistência anárquica contra o capitalismo me pareceu absolutamente ingênua e superficial, até porque toda a discussão política do filme se resume a um embate artificial e pouco crível entre ricos e pobres (sendo Arthur Wayne, o pai do Batman, o representante dos ricos). A conclusão do filme aponta inclusive para o assassinato dos pais de Bruce Wayne como resultado da insurgência popular contra a sua família milionária. 

A partir de certo momento do filme, a "máscara do coringa" se torna um símbolo de revolta social, como em "V de Vingança" ou a série "La Casa de Papel".

Pegando o gancho da morte dos pais de Bruce como um atentado político, não seria arriscado dizer que o filme "Coringa" traz à tona uma inversão de valores nunca antes vista na história do homem morcego, porque representa o palhaço vilão como uma vítima da sociedade e representante involuntário de uma causa anárquica que culmina no assassinato político dos pais do homem que mais tarde se tornaria o Batman para combater o crime e se vingar justamente de quem matou os seus pais por uma causa ideológica. Sendo assim, o Batman lutará no futuro contra os pobres que um dia apoiaram o movimento que matou sua família.

Neste prisma, o herói da DC perde um pouco de sua nobreza. Ou pelo menos a militância política é que é desmoralizada por ser representada como capaz de dar legitimidade aos atos escabrosos de um líder que acreditam lutar pela mesma causa que a sua, mas que no futuro irá prejudicá-los, ao ponto de precisarem do auxílio do Batman. Esta é uma visão interessante que naturalmente me faz lembrar da ascensão de líderes autoritários com grande apoio popular. 

O filme propicia discussões políticas interessantes, como a ascensão de líderes populares mas com discursos de ódio e ações violentas.

Outro ponto polêmico do filme trazido ao debate, principalmente nas redes sociais, é que o filme representa a história de um incel de maneira problemática, pois poderia legitimar o comportamento vingativo e violento de pessoas que se identificassem com o Coringa. Sobre isto, a minha opinião é que este tipo de crítica é absolutamente improcedente, já que se pensarmos assim o cinema (e a arte como um todo) se colocaria na posição de quem não pode falar sobre assuntos delicados sob o risco de provocar nas pessoas comportamentos inadequados. Um cineasta tem controle limitado sobre a maneira como o seu público irá interpretar a sua obra e de nenhuma maneira "Coringa" glorifica o comportamento de seu protagonista.

Ao contrário, o filme aponta para o quão repugnante o seu anti-herói pode ser, mesmo que o roteiro justifique socialmente e psicologicamente os caminhos percorridos por ele, demonstrando sabiamente que nenhuma pessoa adoece por acaso e que nenhum adoecimento psíquico tem sua origem causada somente fatores internos. É claro que Todd Phillips errou de maneira descomunal em diversos pontos de seu filme, mas é preciso ser justo ao dizer que a abordagem do adoecimento de seu protagonista é honesta e correta. Nada contra o sucesso popular e comercial do filme, mas o júri do Leão de Ouro em Veneza errou ao considerá-lo como o melhor filme de 2019.

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