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segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Dois Papas


"Dois Papas" é o mais novo filme do diretor brasileiro Fernando Meirelles, responsável por "Cidade de Deus" (2002), com roteiro de Anthony McCarten, autor de "O Destino de uma Nação" (2017), "A Teoria de Tudo" (2014) e "Bohemian Rhapsody" (2018), todos comentados aqui no blog. O filme que conta a história da coexistência rara e singular de dois papas na Igreja Católica tem um time de peso não só na direção e roteiro, mas também no elenco, com o vencedor do Oscar Anthony Hopkins e o cultuado ator de teatro Jonathan Pryce (que esteve em "Game of Thrones"). Estas são as principais razões para "Dois Papas" ter sido indicado ao Globo de Ouro 2020 justamente nas categorias de melhor filme, roteiro e interpretações para os seus protagonistas.

O filme de Meirelles aproveita uma boa história real para transformar em ficção a amizade estabelecida entre o argentino Bergoglio (o futuro Papa Francisco) e Bento XVI às vésperas da decisão que mudaria pra sempre a história da Igreja Católica: a renúncia do papa. O filme nos leva a crer que Bento XVI convidou Bergoglio para visitar Roma em fins de 2012 já com a esperança de que o cardeal de Buenos Aires pudesse substituí-lo como Papa, mesmo que os dois possuíssem à época (e parece que ainda possuem) diferenças muito fortes de opinião quanto aos rumos da Igreja Católica no que diz respeito à reformas e concessões.

Cena do filme do diretor brasileiro, cuja estreia se deu através da plataforma Netflix.

Enquanto Bento XVI é representado no filme como um alemão de personalidade fria e conservadora, Bergoglio carrega em suas veias latinas um sangue quente e reformista. A antítese entre os dois personagens é certamente o que dá vida e frescor ao filme, porque a história real todos sabemos: Bento XVI foi de fato substituído por Francisco em 2013.

O roteiro da obra falha em narrar com pelo menos um pouco de detalhes o contexto político que ensejou o enfraquecimento de Bento XVI e levou-o a renúncia. Na verdade, o roteiro de Anthony McCarten (que é um escritor de pegada muito popular e comercial) optou por não entrar nas minúcias do que foram os "vatileaks". A história do longa preferiu seguir um caminho mais espiritual e sentimental para esclarecer o contexto da decisão de Bento XVI, nos orientando no sentido da interpretação de sua renúncia por razões mais ligadas à religião e à sua consciência (como na cena em que Bento se confessa), de maneira que a questão dos assédios sexuais e a pedofilia supostamente acobertadas pelo papa alemão aparecem no roteiro apenas sutilmente.

O roteiro poupou o espectador de muitas informações desagradáveis. Na foto vemos Anthony Hopkins e Jonathan Pryce em ação, dois grandes atores com interpretações indicadas ao Oscar.

Talvez o caminho mais arrojado seguido pelo filme de Meirelles (e isso era esperado em um filme de um cineasta brasileiro contando a história de um papa argentino) seja a abordagem da conduta de Bergoglio durante a ditadura militar em seu país, quando o então bispo teria tido um comportamento duvidoso no papel de resgate de presos políticos (entre eles padres jesuítas).

As interpretações no filme são magistrais e sou incapaz de dizer quem está melhor como papa: Anthony Hopkins (como Bento XVI) ou Jonathan Pryce (como Francisco). Ambos os atores são muito experientes e têm igual protagonismo em cena, de maneira que a indicação do Globo de Ouro de ator protagonista para Pryce e coadjvuvante para Hopkins é absolutamente insensata, já que ambos deveriam estar na mesma categoria (o que se repetiu no Oscar). É bastante prazeroso ver os atores dando vida a papas verdadeiros, com seus maneirismos e trejeitos de velhinhos, o que até certo ponto nos deixa na dúvida o que é real e o que é interpretação na caracterização destes atores que por si só já são idosos (especialmente Hopkins, que é 10 anos mais velho que Pryce).

É interessante que neste filme a figura do Papa não é retratada com a pompa que o cinema normalmente a faz merecer, como em filmes épicos ou religiosos, mas o que existe é o resgate do elemento humano dos pontífices, retratados como pessoas reais, que gostam de música, esportes e piadas.

Uma das cenas mais cativantes do filme, quando os papas dividem uma pizza nos bastidores da Capela Sistina.

O roteiro de McCarten e a direção de Meirelles se aliam na construção de um filme que brinca com elementos metafóricos na representação de cenas específicas, como o momento em que Bento e Bergoglio travam uma dura discussão nos jardins em Castel Gandolfo. Nesta cena, uma mosca insiste em zumbir no ouvido de Bento, como a "mosca na sopa" da canção de Raul Seixas. Há um outro momento em que Bergoglio, em um dos flashbacks de seu passado na Argentina, aguarda a resposta de um militar da ditadura sobre presos políticos enquanto o homem dá mais atenção a um jogo de tênis na TV do que ao Bispo.

Alguns estereótipos são reproduzidos na história, como aqueles que insistem em apresentar cada personagem com a personalidade de seu povo (Bergoglio expansivo e Bento retraído) e o clichê avança ainda mais no roteiro quando vemos que Bento XVI aos poucos cede à extroversão do amigo quando dança tango com ele (em uma cena cativante) ou quando o presenteia com um disco dos Beatles. Estas conveniências do roteiro deixam claro o lugar do filme: uma história leve sobre respeitar as diferenças.

Um dos méritos do filme é a representação (mesmo que romantizada) dos papas como pessoas de carne e osso.

Sabemos que o jogo político do Vaticano e os bastidores da Igreja Católica poderiam render um filme que nos deixariam enojados, mas Meirelles quis contar uma história que nos deixa na boca o sabor da conciliação e uma certa ternura dentro do peito. A cena final do filme é um misto de emoções para alemães, brasileiros e argentinos. A Copa do Mundo de 2014, tão amarga para nós, é sabiamente representada, com a vitória alemã, a derrota argentina e a ex-presidente Dilma entregando a taça para o capitão da seleção da Alemanha (mais uma metáfora escondida). Enquanto isso, vemos Bento XVI feliz e Papa Francisco lamentando a derrota de sua Argentina.

"Dois Papas" é uma ficção para deixar o seu dia mais feliz, ao som de "Bella Ciao", no clima de futebol e, por fim, com a imagem revigorante dos créditos bem coloridos, como as casinhas pintadas de Caminito, em Buenos Aires. Não perca!

Um comentário:

  1. Eu desconfio que aqueles dois senhorzinhos que vemos ao longo de toda trama são os VERDADEIROS papas hahahahahaha são incríveis!!!! É completamente cativante assistir essas atuações. É um filme tao sensível e doce. As cenas dos créditos da um quentinho no peito <3

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