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terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

A Vida é Bela


Quando falamos de "A Vida é Bela", filme italiano de 1997, sempre lembramos de "Central do Brasil", filme que concorreu com ele no Oscar de 1999 na categoria "filme estrangeiro" e acabou perdendo, o que de certa forma antipatizou um pouco Roberto Benigni aos olhos dos cinéfilos brasileiros à época. "A Vida é Bela" também ficou bastante marcado como o filme que tratou o holocausto em uma perspectiva bem humorada, coisas aparentemente inconciliáveis.

É preciso ter cuidado ao analisar o filme italiano como uma comédia, porque embora Benigni tenha se valido de uma narrativa fantasiosa e cômica, há um contraste muito grande entre a história elaborada pelo protagonista do filme e aquela que efetivamente aconteceu nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. É essa aparente contradição o que torna o filme criativo e emocionante.

O filme de Benigni foi um dos pioneiros em fazer o que era aparentemente impossível: misturar humor e o holocausto. 

Para assistir à primeira metade de "A Vida é Bela" é preciso abrir um pouco mão da nossa tendência como cinéfilos de procurar nas obras históricas que assistimos realismo e naturalidade, especialmente em filmes com o tema "holocausto". Digo isso pois os primeiros minutos do filme, que funcionam como um prólogo dos dias felizes do protagonista Guido e sua amada Dora na Itália pré-guerra, são minutos bem humorados e ingênuos em uma Itália bucólica e ainda nos primeiros estágios da repressão da ditadura fascista que assolava o país naquela época.

A rotina de Guido, um desastrado aspirante a garçom, se resume a perambular pelas ruas da Toscana e aprontar algumas de suas malandragens, como roubar um chapéu, furtar uma bicicleta e se divertir trombando a todo momento com a mulher que está apaixonado. Este princípio do filme é como uma doce e divertida comédia de Chaplin, que influenciou bastante as gags de Benigni, um ator, roteirista e diretor de grande verve cômica.

Cena dos dias felizes na Itália pré-guerra. Na foto vemos, além de Roberto Benigni, a atriz Nicoletta Braschi (sua esposa também na vida real) e o jovem ator Giorgio Cantarini (que também atuou em "O Gladiador", de 2000).

Acontece que mesmo em um ambiente aparentemente pacífico e cortês que é a Itália dos anos 30, já existe no prólogo de "A Vida é Bela" sugestões do pensamento conservador que tomou conta da elite política italiana à época e que colaboraria para que uma parcela grande da população apoiasse um governo como o de Mussolini. Estas sugestões podem ser sutis como na cena em que o patrão de Guido reprime duas crianças brincando, em alusão ao contexto político da época, ou até mesmo em ocasiões mais explícitas, como no jantar de noivado de Dora, em que uma convidada diz abertamente que existe uma raça superior na Europa, representada pelos alemães.

Outra cena que desmascara o início da perseguição aos judeus na Europa pré-guerra é o momento em que o cavalo do tio de Guido é pintado com inscrições ofensivas ao povo judaico. Ainda assim, a primeira hora de filme é romântica e mais interessada em demonstrar que Guido e a família que constituiu com Dora seria apenas mais uma família europeia feliz e bem realizada se não fossem os horrores da guerra e do holocausto.

Benigni: o diretor, ator e roteirista no set, dando instruções para o jovem talento Giorgio Cantarini.

O longa sofre uma reviravolta quando Guido e o filho (e mais tarde Dora) são capturados pelas autoridades italianas e levados para um campo de concentração. Há algumas licenças poéticas no filme, porque não sabemos exatamente em qual contexto aqueles italianos foram parar em campos de concentração e quais eram estes campos de trabalho forçado. O que se sabe é que o pai do diretor Roberto Benigni foi prisioneiro do campo de Bergen-Belsen (o mesmo campo onde morreu Anne Frank em 1945), o que inspirou o cineasta a contar a história do filme.

É claro que a representação do campo de concentração em "A Vida é Bela" não é dotada do mesmo realismo de outro filmes representativos sobre o holocausto. O que vemos é uma interpretação bastante caricata e figurada, por vezes até mesmo esterilizada, visto que estamos diante de um filme de característica fabular e não documental. É por isso que os gestos de Guido enquanto carrega bigornas e até a sua maneira de marchar em sua derradeira cena são momentos ligeiramente cômicos, porque todo o filme é na realidade a tentativa do protagonista de fantasiar para o seu filho que o campo de concentração não é um local de extermínio, mas sim um ambiente de competição por um prêmio.

A representação do campo de concentração não é realista, mas como uma fábula: Guido quer que o filho acredite que tudo ali não passa de uma competição em que o primeiro lugar leva um tanque de presente para casa.

A boa interpretação de Giorgio torna o filme ainda mais emocionante, principalmente nas cenas finais.

É justamente por isso que não faz sentido julgar Benigni e seu filme por mau gosto ou por uma representação ofensiva da realidade, já que o objetivo do cineasta é justamente emocionar o público ao demonstrar a força de um pai em esconder a todo momento o destino inevitável que a maldade humana escreveu para eles. E o filme consegue demonstrar com maestria justamente um dos papéis da arte e da criatividade, que é oferecer consolo e salvação diante dos problemas irreparáveis do mundo.

E o interessante é que o personagem de Guido não é movido apenas por otimismo ou esperança na tentativa de esconder a realidade de seu filho, mas o que aparentemente o motiva a criar a sua ficção é o seu próprio espírito bem humorado e criativo, que se fosse perdido dentro do campo de concentração significaria imediatamente para o seu filho a morte e a resignação diante do ambiente macabro onde habitam. É por isso que mesmo esgotado e desesperançoso, Guido aproveita cada ocasião para respirar e fingir para o filho que tudo aquilo não passa de uma brincadeira. E ao contar esta história, Benigni não brinca com o holocausto, mas apenas reafirma a desumanidade do massacre dos judeus. Um filme necessário!

ps: Curiosamente, Dora e Giosué (mãe e filho em "A Vida é Bela") são os mesmos nomes dos protagonistas de "Central do Brasil" (Dora e Josué, na grafia brasileira).

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