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domingo, 22 de março de 2020

O Inquilino Sinistro


Embora seja o terceiro filme dirigido por Alfred Hitchcock, "O Inquilino Sinistro", de 1927, é reconhecido como o primeiro filme real do diretor, já que marca o seu primeiro trabalho dentro do gênero suspense, que se consolidaria como a sua marca registrada. É também um dos poucos filmes mudos de Hitchcock, que no início da carreira se mostrava muito influenciado pelo trabalho de Charles Chaplin e especialmente D. W. Griffith, cineastas precursores de um cinema ainda muito apegado às imagens e às interpretações teatrais, em uma época em que o cinema ainda tinha poucas rupturas estéticas e técnicas com aquilo que se poderia chamar de "teatro filmado".

Era esse o desafio para diretores pioneiros como Hitchcock. Partindo de roteiros muitas vezes adaptados de peças de teatros, os cineastas da segunda década do século XX precisavam convencer o público que havia algo de diferente no cinema em relação à outras manifestações artísticas, elementos que o diferenciassem do teatro e o tornasse algo a mais para os espectadores. E os grandes diretores da época encontraram esse caminho através de uma boa conciliação entre fotografia, posicionamento de câmeras e muita criatividade.

"Metrópolis", de Fritz Lang, foi um filme contemporâneo a "O Inquilino Sinistro".

Cena do polêmico "O Cantor de Jazz", também de 1927. Este foi o primeiro filme falado do cinema, em um período de transição importante para a indústria.  

É por isso que assistir a um filme como "O Inquilino Sinistro" é uma experiência tão empolgante, porque estamos diante do primeiro trabalho de um cineasta que anos depois se tornaria referência no assunto. Para artistas, não deixa de ser um alento saber que até os grandes diretores começaram suas carreiras em projetos modestos e despretensiosos.

A história de "O Inquilino Sinistro" é bastante ingênua. Hitchcock escreveu o roteiro do filme após assistir uma peça chamada "Quem é ele?", por sua vez baseada no romance "O Inquilino", da escritora inglesa Belloc-Lowndes, um livro inspirado nos casos do célebre assassino "Jack, o Estripador". Trata-se de um filme sobre um homem misterioso que se hospeda em uma casa de família na cidade de Londres.

A chegada do inquilino misterioso. A composição da cena parece uma pintura.

O pulo do roteiro está no fato de que há um criminoso à solta na cidade, que mata somente mulheres loiras todas as terças-feiras. Aos poucos, a família que hospeda esse homem começa a desconfiar que ele possa ser esse criminoso, chamado na cidade de "O Vingador". Como há uma jovem loira na casa, cortejada por um policial, a situação se torna ainda mais tensa. 

Há muitos elementos no roteiro que antecipam boa parte daquilo que estaria presente na filmografia de Hitchcock. Dentre eles, podemos citar a figura da mulher como preferência do diretor para ser representada como vítima, e ainda mais especificamente a mulher loira. Além disso, temos também a figura do "homem errado", uma constante na obra de Hitchcock, que se dizia muito interessado pelo efeito que causava no público ao mostrar um personagem acusado de um crime que não cometeu.

Ivor Novello e June Tripp em cena. A obsessão do diretor por loiras em filmes de suspense começou em "O Inquilino Sinistro".

Segundo o diretor, os espectadores sentiam-se comovidos e assustados ao se darem conta que qualquer pessoa poderia um dia, por infelicidade, ser acusado de algo que não fez. Mas há outras razões para que o diretor, especialmente em "O Inquilino Sinistro", tivesse de optar pela ideia do homem errado. É que, à época, os produtores não aceitavam que um ator renomado (no caso, Ivor Novello) pudesse ser representado como um assassino para o público. Nem a ideia da dúvida, que tanto instigava Hitchcock, podia ser trabalhada. Era preciso botar os pingos nos i's e dizer para os espectadores que o protagonista não era um vilão. Os tempos mudaram, é claro.

A câmera de Hitchcock e a sua criatividade como diretor dão as suas caras em seu primeiro filme de suspense. Embora uma das cenas mais famosas do filme seja aquela em que o protagonista caminha ansioso em seu quarto e vemos a cena sob a perspectiva do andar de baixo, através de um teto translúcido feito de vidro, o próprio diretor confessou mais tarde que este foi um recurso que não repetiria mais. Segundo Hitchcock, o movimento do lustre no teto indicando que no andar superior alguém caminhava nervosamente já seria o suficiente para um cineasta mais amadurecido.

O posicionamento sugestivo da câmera contribui para que aumentemos nossas suspeitas sobre o inquilino, um engenhoso recurso do diretor.

Ainda assim, esta cena é cultuada como um dos recursos mais criativos e engenhosos do cinema mudo. A minha tomada preferida de "O Inquilino Sinistro" é, no entanto, outra bem mais simples, quando a dona da pensão onde o inquilino está hospedado revista o seu quarto e vemos ele chegando em casa, prestes a pegá-la no flagra. O espectador mais atento verá que Hitchcock filmou o protagonista por cima, com a câmera bem colocada no ângulo entre a porta de entrada e a parede da casa, em uma perspectiva extremamente semelhante a que vemos hoje nas câmeras de segurança (que foram inventadas cerca de 20 anos depois de "O Inquilino Sinistro"). Um gênio.

A fantástica e visionária cena da "câmera de segurança".

Os recursos visuais bem empregados pelo diretor, somados às boas interpretações das atrizes e atores principais, didatizam bastante a história do filme, que se apoia em poucos letreiros para contar a sua história. O próprio Hitchcock, que no início da carreira fazia letreiros pra filmes mudos, disse em entrevista para François Truffaut que o bom filme (fosse mudo ou falado) é aquele que precisa de pouco texto. Essa foi uma constante na obra do diretor, que sempre precisou de poucos diálogos pra contar uma boa história, utilizando-se de uma câmera bem posicionada e bem apontada para aquilo que importasse ao cineasta.

Quando Truffaut se deu conta que Hitchcock era um diretor mal interpretado por seus contemporâneos, que acusavam o seu cinema de ser superficial e rasteiro, ele fez questão que o diretor inglês se defendesse e explicasse que, para ele, o cinema era tanto melhor quanto mais o espectador fosse capaz de descobrir a história por si mesmo. Mesmo que Hitchcock não tivesse se defendido nas entrevistas que deu ao colega francês, os seus filmes são testemunho da sua capacidade técnica e criatividade. "O Inquilino Sinistro" foi o início de tudo. Bom filme!

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