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quarta-feira, 8 de abril de 2020

A Morte Passou por Perto


A vida de cinéfilo por vezes nos presenteia com algumas joias raras pouco conhecidas e bem guardadas da sétima arte, como é o caso de "A Morte Passou por Perto" (ou "Killer's Kiss", no nome original, mais bonito e ambíguo), o segundo filme de Stanley Kubrick, lançado em 1955. Segundo contam, Kubrick renegou o seu filme de estreia, "Medo e Desejo" (1953), de modo que o segundo longa é que contava para o diretor como o ponto de partida de sua carreira bem sucedida, que viria a culminar no reconhecimento um pouco tardio do diretor como um dos maiores cineastas de todos os tempos.

Os primeiros longas de Kubrick são um pouco diferentes dos seus trabalhos mais notáveis, mas ainda assim eles guardam muitas sementes do que viriam a ser as marcas do talento do cineasta mais famoso e genial do Bronx, em Nova York.

O jovem Stanley Kubrick renegou o seu filme de estreia, "Medo e Desejo", de 1953.

"A Morte Passou por Perto" é um filme noir essencialmente novaiorquino, que conta a história de um boxeador solitário morador de um prédio simples nos arredores da cidade. A primeira tomada do filme mostra este personagem, chamado Gordon, em uma estação de trem. Kubrick nos dá acesso aos pensamentos enigmáticos de Gordon e partimos em um flashback para a história dele, em seu apartamento, onde ele aguarda ansiosamente por um carro que viria buscá-lo e levá-lo para a sua aguardada luta naquela noite.

A ambientação do apartamento de Gordon nos permite perceber que ele tem uma vizinha de frente que ele aparentemente costuma espiar, uma sugestão um tanto quanto erótica e que lembra as tantas vezes que este tipo de voyeurismo urbano e noturno foi abordado nos cinemas em filmes de apartamento, como no clássico e talvez pioneiro "Janela Indiscreta", de Alfred Hitchcock, lançado um ano antes.

"A Morte Passou por Perto" explora as luzes da broadway, no preto e branco de Kubrick.

Quando chega o momento de sair do apartamento e ir para a sua luta, tanto Gordon quanto sua vizinha Gloria descem do prédio juntos, por coincidência, o que acaba provocando os ciúmes de uma espécie de cafetão que emprega Gloria em um cabaré na Times Square. É muito interessante a maneira como o roteiro nos informa que Gordon é na verdade um lutador famoso, porque o cafetão o reconhece e conta para a moça que ele tem uma luta importante naquela noite.

A cena da luta de boxe entre Gordon e um jovem que acaba o nocauteando é repleta de alguns posicionamentos de câmera e perspectivas que chegaram até mesmo a influenciar Martin Scorsese em "Touro Indomável", de 1980. Gordon perde a luta e retorna para a sua casa, até que no meio da noite acorda com os gritos de sua vizinha, que foi assediada por seu patrão. O tempo todo o filme brinca com a simultaneidade da vida dos dois vizinhos, como se estivessem destinados a se encontrar. E a briga noturna é a deixa para que Gordon vá até o apartamento de Gloria e os dois se apaixonem.

A cena de luta de boxe que influenciou "Touro Indomável", de Martin Scorsese.

Como estamos falando de um filme noir, um gênero que além de suas características estéticas mais óbvias também tem como aspecto comum a temática gângster e o drama criminal, "A Morte Passou por Perto" se torna um filme de perseguição entre o cafetão e Gordon, que decide fugir de Nova York com a sua nova namorada. Em uma sequência angustiante, vemos uma série quase cômica de erros contribuírem para que um homem morra por engano no lugar de Gordon e Gloria seja sequestrada, com o seu amado tornando-se suspeito de um crime que não cometeu e perseguido pela polícia. A cena em que o patrão de Gordon é assassinado por engano é um belo exemplo do talento de Kubrick como diretor, com a câmera estacionada na entrada de um beco e um uso fantástico de luz que deve ser uma aula de cinema para quem quer que goste de filmar ou que queira se tornar um diretor. 

Quando Gordon decide ir atrás de Gloria, que está sendo feita prisioneira em alguns galpões na região portuária de Nova York, o filme se desloca do glamouroso centro da cidade para uma região pouco habitada da cidade, nas primeiras horas da manhã. O filme não perde o seu charme nesta parte de Manhattan e a história só ganha em termos de dramaticidade, principalmente na longa sequência em que Gordon foge do seu inimigo e seus capangas pelos telhados dos prédios da região, em cenas filmadas do alto, com quase nenhum diálogo, deixando que o espectador compreenda somente através das imagens o que está acontecendo.

Os telhados onde acontece a empolgante e silenciosa cena de perseguição do filme. O cinéfilo mais atento vai se lembrar de "Matrix" (1999) e "Os Infiltrados" (2006).

Mais uma vez a câmera de Kubrick se mostra genial, principalmente quando Gordon vai parar dentro de uma espécie de depósito de manequins, se camuflando entre os bonecos para que não seja encontrado. No depósito, o protagonista não consegue evitar uma luta desastrada pela própria vida com o cafetão, em um inesperado duelo de estilo medieval em plena metrópole, com ferramentas que divertidamente lembram espadas. Esta cena rende gags aceleradas que não são propriamente bem humoradas, mas bastante pitorescas para um filme noir.

Filmado com baixo orçamento por um diretor quase estreante e endividado, "A Morte Passou por Perto" ocupa para mim a posição de um dos filmes mais prazerosos que já vi, deliciosamente dirigido e escrito com economia de palavras, mas overdose de ideias. Curiosamente, Kubrick nunca mais faria um filme com texto original escrito por ele próprio, mas somente dirigiria adaptações de obras literárias, mesmo que escritas por suas mãos.

Os enquadramentos de Kubrick sempre foram um espetáculo à parte em seus filmes. Acima, vemos uma cena de "A Morte Passou por Perto".

A atmosfera urbana, noturna, solitária e a clareza na condução de um breve conto sobre um boxeador azarado são elementos que muito me recordam outros grandes filmes semelhantes que surgiriam em anos posteriores no cinema norte-americano, como o próprio "Touro Indomável", já citado, mas também o vencedor do Oscar de 1977, "Rocky". Além disso, é impossível não se sentir instigado e atraído com o preto e branco de Stanley Kubrick, a trilha sonora jazzística de Gerald Fried e a costumeira fotogenia de Nova York. Assistam!

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