Casablanca

"Casablanca", de 1942, é um dos filmes mais importantes do cinema norte-americano. Em toda roda de cinéfilos ou nas antigas conversas de locadora, sempre foi opinião quase unânime que o longa metragem estrelado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman é talvez o maior exemplo daquilo que chamamos de "clássico" no cinema, por sua composição, pelo seu elenco, trilha sonora e também pelos valores que o filme representa, dado o período em que foi produzido, no calor de uma guerra mundial.

A verdade é que este filme guarda muitas curiosidades como um clássico improvável da sétima arte, com um diretor pouco conhecido, um roteiro escrito a muitas mãos e um título que convenientemente atrairia um grande público para as salas de cinema dos EUA nos fins de 1942, por força de coincidências no curso da guerra.

Cartaz de "Casablanca": um filme gravado no calor da Segunda Guerra Mundial.

A história do filme foi retirada de uma peça de teatro nunca produzida, chamada "Everybody Comes to Rick's", que abordava o encontro de imigrantes e refugiados em um restaurante efervescente na Europa em guerra. Na década de 40, era comum que os maiores estúdios de Hollywood mandassem olheiros para a Broadway com o objetivo de procurar material para produção de novos filmes, de maneira que a Warner acabou encontrando esta peça ainda virgem e decidiu roteirizá-la para o cinema.

O projeto inicial e o texto inacabado do roteiro foi escrito por figurões de Hollywood e, à medida que as gravações iam avançando, o texto continuava a ser escrito e a ganhar novos contornos, uma metodologia um tanto quanto caótica para a equipe técnica e elenco. É preciso dizer que à época os filmes eram feitos dessa maneira e quase todos os envolvidos na produção de um longa tinham o direito de dar opinião no texto dos roteiros, principalmente os produtores, que eram quem estavam investindo muito dinheiro naquelas empreitadas. Foi assim que Casablanca surgiu.

O trio protagonista de Casablanca. Da esquerda para a direita: Paul Henreid, Ingrid Bergman e Humphrey Bogart.

As gravações foram todas feitas nos estúdios da Warner Brothers, exceto poucas tomadas em um aeroporto de Los Angeles. Em 1942, quando o filme foi rodado, os Estados Unidos já haviam entrado de vez na Segunda Guerra Mundial e portanto não era muito seguro para artistas se exporem demais em tomadas externas, até porque o território norte-americano já havia sido atacado pelos japoneses no Havaí. Isso só ajudou o serviço do diretor Michael Curtiz, pouco conhecido entre nós, mas certamente um dos maiores diretores do cinema norte-americano.

Curtiz era um verdadeiro mestre da filmagem em estúdios, um gênio na arte da iluminação e da criação de ambientes muito teatrais, quase místicos. Influenciador de nomes da geração posterior de cineastas como William Friedkin e Steven Spielberg, Curtiz foi capaz de criar em Casablanca um clima verdadeiramente noir, uma atmosfera pouco natural, mas muito evocativa do que poderia ser uma cidade como Casablanca, no norte da África, mesmo que ninguém do elenco sequer tenha pisado lá em algum momento das gravações.

O diretor Michael Curtiz (à esquerda), ao lado de Ingrid Bergman e o produtor Hal B. Wallis. Todos ganharam pelo menos um Oscar ao longo de suas carreiras.

Os diálogos da primeira metade do roteiro (a que foi escrita na pré-produção) são os mais espirituosos e provavelmente os melhores de todo o filme, bem humorados, sarcásticos e cínicos como o personagem de Bogart, um norte-americano fugido da França ocupada por Hitler e proprietário de um restaurante em Casablanca. A história de "Casablanca" é muito bem contada pelas câmeras de Curtiz, que sabe desaparecer como diretor para deixar que elenco, cenários e trilha sonora falem por si.

Bogart, um dos maiores atores de Hollywood, está perfeito no papel de um sujeito reservado, cínico e até mesmo carrancudo, que por sorte (ou ironia) do destino acaba tendo em suas mãos documentos que podem salvar a vida da mulher que ama (Ingrid Bergman) e o marido dela, um fugitivo de campo de concentração. É interessante que o filme que se passa durante a Segunda Guerra Mundial foi de fato filmado durante a guerra e aborda fatos e notícias frescas do momento, como a ocupação nazista em Paris e os próprios campos de prisioneiros do holocausto de Hitler.

O famoso "Ricks", restaurante do protagonista de Casablanca, onde se passa quase toda a história do filme.

Depois que a personagem de Ingrid Bergman e seu marido aparecem na história, o que até então parecia uma boa história noir ganha contornos de um triângulo amoroso muito melodramático, o que na minha opinião enfraquece um pouco a qualidade do texto bem escrito da primeira metade do filme. Não fiquei surpreso quando relacionei esta mudança brusca no enredo com os muito relatos de que o script era constantemente reformado pelos produtores e roteiristas, de maneira que nem Bogart nem Bergman sabiam ao certo se ficariam juntos no final da história, um fato no mínimo curioso.

Ainda assim, "Casablanca" me impressiona como um filme verdadeiramente patriótico e anti-nazista, mesmo que isto fosse algo previsível e talvez obrigatório para o mercado de filmes de guerra da época. O que me chama a atenção é que tanto diretor quanto roteiristas conseguem aproximar de maneira muito autêntica os seus espectadores do sentimento democrático e romântico dos protagonistas-heróis da história, como Rick (Bogart) e o policial Renault, mesmo que eles não sejam ideais de heróis românticos no cinema ou na literatura.

O policial Renault (sentado) é um personagem ambíguo, que ora flerta com os nazistas, por conveniência, ora apresenta um comportamento solidário à Rick e os amigos.

O policial, por exemplo, é um personagem ambíguo, um corrupto mas ao mesmo tempo bom moço pró-aliados na guerra política e ideológica da cidade de Casablanca. A cena em que os clientes do restaurante de Rick cantam "A marselhesa" para abafar um cântico nazista é bem representativa do teor patriótico e ao mesmo tempo sofisticadamente abusado do filme de Curtiz. A cidade do norte da África é representada no filme a partir dos estereótipos tão comuns da caricaturização do mundo árabe no cinema norte-americano, um clichê reproduzido até mesmo por Spielberg, em seu primeiro "Indiana Jones", um filme esteticamente influenciado por "Casablanca".

Os moradores do local são tratados como infratores, malandros e a própria cidade uma espécie de mero "rito de passagem" forçado para a emigração para os EUA, a terra da democracia. Apesar deste clichê, o filme tem uma ambientação dramática e teatral que muito funciona para que o espectador consiga compreender que nenhum dos três integrantes do triângulo amoroso gostaria de ficar por ali, sobretudo porque na Segunda Guerra Mundial não escapar dos nazistas poderia significar uma morte dolorosa.

O set de Casablanca, construído em estúdio, é detalhado e evoca um ambiente hostil estereotipado, como em "Indiana Jones", de Spielberg.

Visto dentro de seu tempo, "Casablanca" funciona como um poderoso grito de guerra contra o nazismo e um potente prenúncio de que somente com os norte-americanos aquela guerra poderia ser vencida. Foi providencial para o filme que, alguns meses depois de sua estreia, a cidade de Casablanca tenha sido palco de uma reunião entre os aliados para planejar a reconquista do continente europeu pelo bloco anti-nazista. Este evento histórico provocou ainda mais a fama do filme e alavancou a sua bilheteria.

Em 1944 a obra recebeu o Oscar de melhor filme, diretor e roteiro adaptado. Foi o segundo Oscar da carreira de Michael Curtiz, que fez um número inacreditável de filmes ao longo de sua vida. Humphrey Bogart e Ingrid Bergman conseguiram o feito de se eternizarem na cultura popular como um dos casais mais lembrados da história do cinema, ganhando estatuetas do Oscar por trabalhos futuros. Creio que "Casablanca" deve ser o filho mais querido da Warner e talvez um dos maiores orgulhos da indústria cinematográfica dos Estados Unidos. É um clássico dentro do que o cinema produzia na década de 40, um filme necessário para quem gosta de ouvir boas histórias.