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sexta-feira, 3 de abril de 2020

Cidadão Kane


Escrever sobre "Cidadão Kane", de 1941, é uma tarefa difícil para cinéfilos e críticos, porque o filme é frequentemente referenciado como uma das obras mais importantes da sétima arte, por suas contribuições técnicas, estéticas e pela qualidade com que foi concebida pela mente genial de Orson Welles. De fato, é impossível falar de "Cidadão Kane", primeiro filme de Welles, sem falar um pouco sobre o seu criador, uma figura controversa e tão fundamental para o cinema norte-americano, um cineasta cujo filme de estreia fez mais barulho e causou mais impacto do que qualquer outra obra que ele produziria em sua carreira.

A carreira de Orson Welles começou no teatro, como é sempre muito comum entre os cineastas do início do século passado. Ele possuía uma companhia, chamada Teatro Mercury, que apresentava espetáculos clássicos na Broadway, na década de 1930. Certa vez, Welles participou de uma piada de Halloween em uma rádio norte-americana, onde o ator e sua trupe de atores encenaram um trecho de "Guerra dos Mundos", de H.G. Wells, e não contaram para ninguém que se tratava de uma rádio-novela.

Em 30 de outubro de 1938, Orson Welles interpreta a "Guerra dos Mundos" na rádio CBS. A brincadeira lhe renderia fama em Hollywood.

Muitas pessoas acreditaram na mentira elaborada e por alguns minutos houve pânico e comoção na cidade de Nova York, que acreditava-se invadida por alienígenas assim como no livro de Wells. A brincadeira na rádio rendeu fama a Welles, que em pouco tempo foi convidado para trabalhar em Hollywood. 

Em Los Angeles, o ator e diretor de teatro precisava convencer os produtores locais de que valeria a pena filmar um trabalho seu, que se não me engano não tinha ainda nenhum conhecimento técnico sobre fazer cinema. Welles tinha à época cerca de 25 anos de idade. Foi no início dos anos 40 que surgiu a ideia de escrever um filme sobre a ascensão e queda de um poderoso magnata da imprensa, um conceito inspirado na vida real do norte-americano William Randolph Hearst, pioneiro do que chamamos de "imprensa marrom".

Por volta de 1940, Orson Welles embarcou para Los Angeles e iniciou uma carreira em Hollywood que renderia muitos frutos. Na foto acima, vemos o cineasta ao lado da artista Dolores del Río, que foi sua companheira.

Como Hearst era um dos homens mais poderosos dos EUA naquele período, a ideia do filme de Welles provocou bastante hesitação por parte dos produtores em Hollywood. Corre até hoje a história de que a própria indústria do cinema se envolveu para que o filme não fosse lançado, tamanha a proximidade entre o roteiro e a vida pessoal de Hearst, que poderia cometer represálias contra o mercado de filmes. A verdade é que a produtora RKO decidiu bancar a obra mesmo assim e Welles a filmou de maneira extremamente experimental e com uma agenda intensiva.

A técnica de Welles era arrojada e muito pouco pragmática, porque ele de fato desconhecia o fazer cinematográfico convencional e não era ainda um diretor de cinema. Para compor o seu elenco, o cineasta levou os melhores atores da sua companhia, a Mercury, para Los Angeles, incluindo nomes notáveis como Joseph Cotten, Everett Sloane e o lendário compositor Bernard Herrmann, que em "Cidadão Kane" fez a primeira de suas prolíficas e premiadas trilhas sonoras, tais como as de "Psicose" (1960) e "Taxi Driver" (1976).

Da esquerda para a direita: Joseph Cotten, Orson Welles e Everett Sloane. Um elenco estrelado.

O resultado disso tudo é um filme bem dirigido, com boas interpretações (principalmente a do próprio Orson Welles no papel principal) e um desfile de técnicas pouco usuais no cinema da época, como por exemplo o "foco profundo", ou seja, a possibilidade do espectador ver objetos em planos diferentes na mesma tomada e com a mesma clareza. Estas técnicas eram feitas de maneira artesanal e tornaram-se extremamente influentes para trabalhos posteriores de outros cineastas.

De maneira contrária ao que esperavam os empresários do cinema quanto à repercussão do filme em relação às coincidências entre o roteiro e a vida do magnata Hearst, nem foi preciso fazer muita coisa para camuflar a popularidade do longa, que por si só não conquistou muita coisa além do desinteresse do público, apesar de uma calorosa recepção da crítica.

O "foco profundo" de Welles: uma inovação que transformaria o cinema.

Com a baixa bilheteria, tanto Welles quanto sua companhia de teatro foram dispensados pela RKO e o filme perdeu quase todos os Oscar's que disputou em 1942, exceto "Melhor Roteiro Original", que deu a estatueta a Welles e Mankiewicz, co-escritor da história. Segundo contam, Orson Welles perdeu bastante o controle criativo dos seus filmes após "Cidadão Kane", o que pode justificar a perda de exuberância do jovem diretor depois de seu primeiro filme, mesmo que tenha sim produzido longas importantes durante sua carreira.

Assistir "Cidadão Kane" pode ser uma experiência tão enigmática quanto o próprio filme e seu roteiro. Não é o tipo de longa que um espectador deve procurar como "entrada" no mundo do cinema, porque um de seus maiores méritos é justamente a sua concepção pouco ortodoxa e a sua estrutura narrativa fragmentada e eclética, tal como um quebra-cabeças, objeto que aparece na obra como uma metáfora bastante clara e auto-referenciada no roteiro. O filme nos conta uma boa história, um conto sobre o nascimento e o declínio de um homem poderoso, com muito dinheiro mas poucos afetos, como o célebre personagem Gatsby do romance de Fitzgerald.

A cena do espelho em "Cidadão Kane". Welles repetiria o conceito desta famosa tomada em "A Dama de Shanghai", de 1947.

A obra-prima de Welles questiona a todo momento os limites da conexão entre riqueza e felicidade, o luxo e a singeleza, e esta pode ser uma das chaves para compreender um dos grandes enigmas do filme, representado pela palavra "rosebud". Como o próprio Charles Kane diz no filme: "Se eu não tivesse sido rico, teria sido um grande homem de verdade". "Cidadão Kane" é uma obra sobre o que os homens poderiam ter sido se fossem um pouco menos apegados ao capital, o que ironicamente deu ao filme uma conotação comunista anos mais tarde, no contexto da Guerra Fria e do Macartismo. Mas essa é uma história para outro momento. Bom filme!

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