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segunda-feira, 27 de abril de 2020

O Estranho que Nós Amamos


Este é o sétimo filme dirigido pela norte-americana Sofia Coppola, uma das diretoras de cinema mais talentosas dos EUA e provavelmente uma das maiores representantes de sua geração de cineastas. "O Estranho que Nós Amamos", de 2017, foi o longa que lhe deu o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes naquele ano, com um roteiro escrito por ela própria, baseado em um romance de Thomas P. Cullinan que já havia sido adaptado para o cinema anteriormente em 1971 por Don Siegel, com Clint Eastwood no papel principal. Enquanto a primeira versão do romance (que não vi) é aparentemente um drama gótico típico de seu diretor, a segunda versão feita por Coppola me pareceu um filme autenticamente concebido sob uma ótica feminina perspicaz e politicamente reparadora.

Sofia começou a carreira como atriz e depois seguiu como roteirista e diretora. Na foto, ela posa com a sua estatueta do Oscar, conquistada com o roteiro original de "Encontros e Desencontros" em 2003.

A história do longa é simples e por si só muito instigante: uma adolescente encontra um soldado inimigo sulista ferido próximo à casa onde mora, bem no meio da Guerra Civil Americana (ou Guerra de Recessão), no século XIX. Comovida com o homem ferido (Colin Farrell), ela decide levá-lo para o reformatório feminino onde mora, um palacete gerido por uma tutora severa, porém humana, onde vivem outras adolescentes.

Esta tutora é interpretada por Nicole Kidman, uma grande atriz em um de seus grandes papéis, que no elenco é acompanhada por outras atrizes importantes, como Kirsten Dunst (em mais uma parceria com Sofia Coppola) e Elle Fanning. Há um elemento sombrio no roteiro, que é o fato de que aquelas mulheres, ao decidirem resgatar o soldado e levá-lo pra dentro de sua casa, acabando acolhendo um inimigo clandestinamente. Graças ao talento da tutora da casa, o homem é curado de uma grave ferida na perna e aos poucos ganha a simpatia das moradoras do local.

Clint Eastwood e Elizabeth Hartman na primeira versão do filme, de 1971.

Como o enredo se passa durante uma guerra, os homens norte-americanos em idade adulta naquela época estavam todos combatendo. Por essa razão, as mulheres da casa estão todas afastadas a um bom tempo de figuras masculinas, seja no sentido paternal da presença de um homem seja no sentido da presença física e sexual, o que naturalmente provoca um rebuliço no reformatório com a chegada do soldado ferido.

Enquanto algumas crianças se mostram fascinadas com a sua figura, carentes de um pai ou um amigo, as meninas mais velhas parecem verdadeiramente apaixonadas por ele, especialmente a personagem de Kirsten Dunst (que é trabalhada com mais profundidade pelo roteiro) e a própria dona da casa, que em pouco tempo já passa a demonstrar simpatia pelo hóspede. O soldado se aproveita da situação e gradualmente manifesta interesse por algumas - assim mesmo, no plural - das mulheres da casa.

Colin Farrell e Kirsten Dunst em "O Estranho que Nós Amamos" (2017).

Aí entra o segundo elemento sombrio do roteiro, para não dizer macabro, que é o fato de que o perigo  inicial do "estranho dentro de casa" acaba ironicamente se convertendo em um risco para o próprio hóspede, que se vê prisioneiro daquelas mulheres por causa de sua condição física e de saúde. E não deixa de ser curioso para nós espectadores que um ambiente aparentemente habitado por mulheres frágeis se torne uma verdadeira fortaleza onde o soldado, por causa de seus desvios éticos e morais, acaba ele próprio se tornando um interno.

Sofia Coppola consegue transmitir aos espectadores, de maneira muito bem sucedida, a sensação de que aquela casa tão ensolarada e bucólica se torna aos poucos um local hostil de onde o soldado dificilmente retornará com vida, pagando pelos seus próprios pecados. E a diretora faz isso através de planos fechados em portas, fechaduras e tomadas recorrentes em que vemos uma das jovens vigiando com sua luneta o entorno do "castelo" onde habitam.

O filme de Coppola tem uma atmosfera sombria e misteriosa. Na foto, vemos as sete mulheres da casa.

O resultado disso tudo é uma história bem contada, com um clima sombrio e melancólico, muito bem filmada pelas lentes de Coppola, com a sua sensibilidade característica como diretora, utilizando-se de métodos e recursos pouco rebuscados para filmar. A trilha sonora, que se limita a algumas músicas tocadas pelas próprias alunas do reformatório e uma canção nos créditos finais, foram executadas pela banda de rock Phoenix (cujo cantor é marido de Coppola).  As gravações internas do filme foram feitas em uma casa de verdade, de propriedade da atriz Jennifer Coolidge (que fez "American Pie"). Os figurinos são muito realistas, inspirados em roupas verdadeiras utilizadas pelas mulheres no período da Guerra Civil e criados por um especialista do MET, de Nova York.

Embora faça parte de um gênero de filmes por vezes criticado, que é o dos remakes, a obra possui um grande valor. Se compreendermos a arte como reparação da realidade, o filme de Sofia Coppola é exemplar à medida que protagoniza as mulheres e dá a elas a oportunidade de não se permitirem serem mortas ou violadas. Recomendado! 

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