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segunda-feira, 20 de abril de 2020

O Estranho sem Nome


"O Estranho sem Nome", de 1973, é o primeiro western dirigido por Clint Eastwood, escritor, produtor, ator e diretor que se notabilizaria mais tarde como um dos grandes expoentes do gênero e também um dos cineastas mais bem sucedidos do cinema norte-americano, vencedor de quatro estatuetas do Oscar (duas como diretor e duas como produtor). Se fosse lançado em 2020, a estreia de Eastwood na direção de faroestes teria sido também o provável fim da sua carreira, porque o filme envelheceu mal e revela aspectos éticos e morais bastante duvidosos em sua concepção. Analisado criticamente no século XXI, este misto de western e suspense não pode ser considerado senão um filme ambíguo e entediante. Ainda assim, decidi escrever um pouco sobre ele.

Clint Eastwood com as suas estatuetas do Oscar por "Os Imperdoáveis", em 1993. Ele repetiria o feito em 2005, por "Menina de Ouro".

A premissa de "O Estranho sem Nome" é a seguinte: um cavaleiro misterioso (interpretado por Eastwood) chega a uma pequena cidade à beira de um lago, onde é muito mal recebido por três pistoleiros, que ele não exita em matar. Mais tarde, ele descobre que este trio de homens havia sido contratado por uma empresa da cidade para protegê-la de outros três homens que saíram da prisão e estariam se dirigindo para lá com o objetivo de se vingar daqueles que os prenderam.

O personagem de Eastwood (que não tem nome, daí o título em português), supostamente foi parar naquela cidade somente para tomar uma cerveja, mas depois descobrimos que ele está ali mesmo para se vingar, só que no seu caso pela morte de um homem covardemente assassinado na cidade alguns anos antes, com a conivência dos moradores do vilarejo. 

O homem sem nome toma uma cerveja como desculpa para um plano antigo de vingança.

Como o trio de pistoleiros foi facilmente derrotado pelo estranho sem nome, o xerife da cidade acaba contratando o assassino para ser o novo protetor do vilarejo, o que ele relutantemente aceita apenas com uma condição: que ele tivesse carta branca para fazer o que quisesse na cidade. Logo no dia da sua chegada, o misterioso homem estupra em plena luz do dia uma mulher com quem ele tromba. Ele a leva pra um estábulo, tira a sua roupa e faz sexo forçado com ela ali mesmo.

Talvez o que mais nos assuste na cena não seja o estupro por si só, mas o fato de que após alguns segundos de sofrimento a mulher violentada passe a agir com ternura em relação ao seu estuprador, o abrace e fique ali no chão inerte depois de ter chegado ao orgasmo junto com ele. O homem sem nome se levanta, fecha a sua calça e se dirige para uma barbearia, como se tivesse ido ao banheiro.

As cenas de estupros e a representação das mulheres são um dos pontos fracos de "O Estranho sem Nome". Na foto acima vemos Marianna Hill e Clint Eastwood.

Como se essa cena não tivesse sido suficientemente nojenta, não apenas pelo estupro mas pela maneira como a mulher violentada foi representada, outro momento deplorável se desenrola na barbearia: enquanto relaxa na banheira o pistoleiro é surpreendido pela mulher que acabou de estuprar. Ela entra no cômodo onde ele está e desfere um grande número de tiros contra ele, errando todos e sendo contida pelo xerife local. Ao perceber que não foi ferido, o homem sem nome se diz surpreso por ela ter demorado tanto tempo para reagir ao seu estupro, recebendo a seguinte resposta de seu escudeiro anão: "ela deve ter ficado brava porque você não a procurou outra vez".

O chiste de mal gosto é repetido outras vezes no filme, sendo que a cena do impossível "estupro consentido" na visão do diretor e roteirista se repete mais tarde, com outra mulher, como se houvesse uma aura irresistível no anti-herói capaz de o transformar no desejo sexual de qualquer mulher da cidade, mesmo que ele só faça sexo com elas através da força.

O personagem Mordecai (à direita) foi interpretado por Billy Curtis (1909-1988), ator que foi um Munchkin em "O Mágico de Oz" (1939) e esteve em "O Sabotador" (1942), de Alfred Hitchcock.

Quase todos os habitantes da cidade são representados como verdadeiros covardes, inertes e incapazes de tomar qualquer partido contra o homem sem nome e os seus desmandos sobre o vilarejo. Como todos estão com medo da chegada do trio de pistoleiros que prometeu destruir a cidade, a população acaba entregando nas mãos do homem misterioso o seu destino e se curvando para todos os seus desejos, mesmo os mais irracionais, como pintar toda o vilarejo de vermelho e realizar um piquenique coletivo nas ruas da cidade, um banquete que acabará se transformando em um mar de sangue nas cenas finais.

O próprio homem sem nome debocha de todos os moradores dali, transformando em prefeito e xerife a figura de um anão (um ator célebre que trabalhou em "O Mágico de Oz" (1939) e "O Sabotador" (1942) anos antes). A julgar pelo resultado final da empreitada dos moradores da cidade, o homem misterioso foi para a cidade muito mais prejudicial do que os três vilões pistoleiros poderiam ter sido.

O herói-vilão em seu cavalo e a cidade pintada de vermelho ao fundo.

O estranho sem nome é no filme a figura do salvador imoral, anti-ético, movido por um espírito de vingança, que conquista a subserviência dos moradores do vilarejo através do medo e da violência. Como todos na cidade precisam dos serviços policiais do sujeito sem nome, os moradores acabam se curvando aos seus desejos, mesmo que claramente abusivos e injustos. O homem então mata covardemente moradores da cidade, estupra mulheres, ofende a autoridade política, policial e religiosa da cidade e vai embora imune, não como alguém que os tivesse salvado, mas sim como um vingador movido pelo desejo de revanche contra aqueles que se calaram diante da morte de um homem que não sabemos quem é, mas que ele claramente representa. Pode ser que o homem desconhecido seja um fantasma vingando a sua morte física, como a cena final do filme parece sugerir. 
Embora "O Estranho sem Nome" seja pouco promissor se visto hoje, foi o ponto de partida de uma carreira de sucesso para Clint Eastwood. Na foto acima, o diretor estreante olha pelas lentes de uma antiga câmera Panavision, no set do filme de 1973.

O grande equívoco do filme é que os desvios morais do estranho sem nome parecem perdoáveis ao roteiro e isto me incomoda principalmente na representação das mulheres que foram violentadas pelo protagonista. Ora, seria possível compreender o filme como uma grande crítica a auto-subjugação de uma comunidade politicamente ignorante a um homem de comportamento autoritário e violento, mas que parece uma figura aceitável aos olhos do moradores porque pode lhes garantir segurança. Esta é, inclusive, a chave para a compreensão da ascensão de autoridades fascistas e a sua popularidade entre os chamados "cidadãos de bem".

Acontece que quando o filme retrata as mulheres como objeto de consumo do protagonista e o filme é estruturado a partir da perspectiva deste personagem, os espectadores são naturalmente levados a crer que o homem sem nome é o herói do filme. E as personagens femininas não recebem outro tratamento no roteiro que não o de mulheres facilmente iludidas, más de pontaria, carentes e que não resistem a um estupro sem se apaixonarem pelo estuprador. É por isso que o filme peca eticamente, envelhecendo mal e certamente manchando o início da carreira de Eastwood, mesmo que anos mais tarde ele tenha revisto um pouco os seus conceitos como cineasta.

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