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domingo, 30 de maio de 2021

Convenção das Bruxas (2020)

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Anne Hathaway comanda o coven de bruxas em uma convenção no interior dos Estados Unidos

A pandemia prejudicou bastante a distribuição de "Convenção das Bruxas", filme de 2020 dirigido por Robert Zemeckis. Aqui no Brasil o filme quase passou despercebido, ausente das salas de cinema, em sua maioria fechadas por conta do COVID-19, e também das plataformas de streaming, provavelmente por causa da HBO (que ainda não tem um serviço de streaming pra valer no nosso país). Por esta razão, creio que, no Brasil, o público infantil a que a obra se destina praticamente desconhece essa nova adaptação cinematográfica do livro escrito em 1983 pelo britânico Roald Dahl, lendário autor de histórias de fantasia que incluem clássicos da literatura infantil como "A Fantástica Fábrica de Chocolates" e "Matilda", ambos levados com êxito para o cinema.

É bastante irônico que o "Convenção das Bruxas" de 2020 ainda seja pouco conhecido aqui no nosso país, principalmente porque a primeira adaptação do livro para as telonas, de 1990, fez muito sucesso na televisão e nas vídeo locadoras brasileiras. Eu que fui criança na década de 90 aluguei repetidas vezes o filme em VHS, que me assustava bastante sempre que o assistia. Apesar do sucesso, a verdade é que esta primeira adaptação também passou muito tempo sumida da televisão, aparecendo de vez em quando na Netflix e tendo sido lançada em DVD (creio que pela primeira vez no Brasil) somente há pouco tempo. O filme de terror infantil de 30 anos de idade e com pouco alcance para as crianças de hoje em dia deve ter despertado interesse em Hollywood, que farejou grande potencial em readaptar a história de Roald Dahl para o cinema, com produção de Alfonso Cuarón e Guillermo del Toro, este último grande entendedor de cinema de horror e de fantasia.

Nesta versão de 2020 os protagonistas são negros, uma novidade em relação ao filme de 1990.
 

Eu não li a obra "As Bruxas", de Roald Dahl, que serviu como base para adaptação do roteiro do filme, mas creio que o livro original foi tratado com certa fidelidade nesta versão, pelas muitas semelhanças no enredo quando comparado com o filme de 1990. A história é basicamente um conto sobre um pequeno jovem órfão criado pela vó, uma senhora de grande conhecimento sobre bruxaria e que buscando proteger o seu neto ameaçado o leva para passar uns dias em um belo hotel no interior dos Estados Unidos. Embora vó e neto acreditem estar protegidas no luxuoso hotel, acabam descobrindo uma infeliz coincidência: o local está sediando uma convenção de bruxas. A grande releitura desta versão de 2020 é trazer para o filme uma questão racial, porque neste filme os protagonistas (vó e neto) são negros e há uma superficial abordagem da perseguição das bruxas como uma fixação racista e eugenista contra crianças pobres.

A abordagem racial é, no entanto, limitada, e qualquer possível relação entre as bruxas em convenção e uma seita racista são descartadas quando descobrimos que há no coven (nome genérico pra agregação de bruxas) mulheres negras que, ao que parece, não estavam infiltradas na Klan. Uma boa oportunidade perdida pelos roteiristas, mas paciência. Falando em oportunidade perdida, outra bola fora do filme de 2020 tem nome próprio e se chama Anne Hathaway. A atriz nova iorquina vencedora do Oscar e uma das mais talentosas de sua geração certamente não convence no filme interpretando a antagonista da história e a personagem potencialmente mais emblemática da obra: a Grande Bruxa. Falta maldade nos olhos da personagem, falta uma caracterização repugnante que a faria amedrontar até os adultos e o pior: sobra uma interpretação caricatural de uma bruxa com um datado sotaque de leste europeu (embora no filme se diga que ela tem origem na Noruega), incapaz de impor respeito até mesmo a um rato, literalmente.

A personagem interpretada por Octavia Spencer tenta ajudar o trio de ratinhos.
 

Falando em rato, "Convenção das Bruxas", a versão antiga ou a nova, é um filme de ratos falantes. É um filme de bruxa, com certeza, mas é também uma daquelas comédias com ratinhos que falam e fazem trapalhadas. E neste ponto devo dizer que o tempo e o avanço da computação gráfica favoreceram a história contada em forma de filme, já que nesta versão o diretor Robert Zemeckis soube trabalhar muito bem as cenas de ação protagonizadas pelos ratos computadorizados. Pra dizer a verdade, as cenas com os ratos são as melhores do filme, assim como a boa interpretação de Octavia Spencer (uma atriz muito acima deste papel, é verdade) e do jovem protagonista que curiosamente no filme não tem nome nenhum. Por outro lado, outra bola fora de "Convenção das Bruxas" foi a questionável escolha por uma narração em off da história pelo ator Chris Rock, o que dá ao filme a todo o momento o clima de um longo episódio de "Todo Mundo Odeia o Chris", só que em uma versão especial (e muito menos humorada) de Halloween.

Até agora evitei falar muito sobre a primeira versão do livro para o cinema, a de 1990, mas creio que será inevitável para concluir a minha opinião sobre o filme de 2020. Embora esta nova versão não seja propriamente um remake, já que a história original é um livro, entendo que este tipo de atualização seja necessária e até mesmo inevitável conforme o tempo passa, a tecnologia avança, os valores mudam e outras pautas se tornam mais urgentes. Acontece que nesta releitura da história do século XXI, desapareceu a dosagem entre o humor e terror que marcava tanto o filme de 1990. Um exemplo é que na versão de trinta anos atrás o recepcionista do hotel era interpretado por Rowan Atkinson, um ator que fazia de seu personagem alívio cômico para as cenas verdadeiramente repugnantes dominadas pela vilã interpretada por Anjelica Huston, que soube criar uma Grande Bruxa que era a alma do filme. A vilã no filme tinha uma aura ao mesmo tempo sexy e perversa, mesmo isso soando muito estranho pra um filme infantil, mas que literalmente hipnotizava as crianças espectadoras, especialmente na brilhante cena em que ela revela pela primeira e única vez o seu verdadeiro rosto para as colegas de convenção.

Anjelica Huston como a Grande Bruxa da versão do filme de 1990.

A figura de uma vilã verdadeiramente assustadora faz com que um filme de terror infantil tenha muito mais valor, já que coloca o seu público em permanente estado de tensão com a possibilidade de seu súbito aparecimento. A versão do filme de 1990 consegue nos fazer enxergar uma criança em apuros, amedrontada pelo conjunto de bruxas terríveis que a perseguem. A adaptação de 2020 amaciou bastante qualquer pretensão que "Convenção das Bruxas" pudesse ter como um filme de terror e o reduziu a uma aventura bem humorada com uma antagonista fraca e sem brilho. Pode ser que as crianças de 2021 prefiram a nova versão, mais bem produzida e ressignificada, mas a verdade é que o cult infantil com Angelica Huston é o que provoca aquele que é o maior objetivo de todos os filmes de terror: o medo.

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