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segunda-feira, 22 de julho de 2019

Um Corpo que Cai

Este é um dos filmes mais notáveis de toda a filmografia de Alfred Hitchcock, lançado no ano de 1958 e frequentemente citado por especialistas como sua obra tecnicamente mais impecável. No Brasil, o título original - que seria simplesmente "Vertigem" - foi traduzido como "Um Corpo que Cai", em um daqueles casos em que a tradução pecou por excesso de dramaticidade e entregou previamente um ponto importante do roteiro de maneira desnecessária. O filme tem uma identidade visual muito marcante e quando lançado inovou com cartazes coloridos e de visual moderno, usando e abusando das cores. Isto não era muito comum na obra de Hitchcock, até então sempre muito sóbrio em relação ao uso de cores e luz, mas acabou por se tornar uma marca de seus trabalhos mais maduros. Esta experimentação do diretor guarda íntima relação com o caráter onírico do roteiro do filme, como veremos mais adiante.

A história tem muitos elementos em comum com outros filmes do diretor, como por exemplo a presença de um protagonista masculino (aqui interpretado por James Stewart em mais uma de suas colaborações com Hitchcock), além da figura da loira estonteante escolhida a dedo pelo diretor (embora Kim Novak tenha sido eleita como segunda opção após impossibilidade de Vera Miles). A verdade é que o elenco é um dos pontos fracos do filme e mesmo Stewart parece mais do mesmo em sua interpretação que se assemelha muito com a de "Janela Indiscreta" (1954). Outro elemento em "Um Corpo que Cai" coerente com a filmografia de Hitchcock é a história misteriosa, a busca quase paranoica do protagonista, um detetive aposentado, pela verdade sobre a esposa de um cliente magnata de São Francisco. A cidade da Califórnia é um personagem à parte na história, muito fotogênica e bem explorada pelo diretor nas cenas externas (que ele tanto desgostava filmar), mas que valorizam não apenas o clima noir do filme, como também os pontos turísticos reais que aparecem na história.

A direção de Hitchcock é muito precisa e marcante, e neste filme especialmente ela mescla o seu estilo clássico e técnico com a experimentação gráfica e quase surreal em algumas tomadas. Há uma cena muito interessante dentro do museu "Legion of Honour" que me divertiu bastante. Isto porque eu assisti o filme ao lado de minha namorada e ela achou engraçada a maneira como Hitchcock abusa do zoom para mostrar aos espectadores aquilo que deseja na cena. Esta técnica parece um tanto quanto superada hoje para nós que nos acostumamos ao cinema contemporâneo, mas este tipo de filmagem é muito representativo do que Alfred Hitchcock chamava de "cinema puro", ou seja, aquele em que não se precisa dizer muito. Menos é mais: essa é uma filosofia em "Um Corpo que Cai" e a direção propositalmente cria ambientes que simulam sonhos e dão ao espectador a sensação de que nada do que acontece faz sentido. A iluminação reforça este ambiente onírico, especialmente porque o diretor parece ter usado filtros de neblina e brincou com a nebulosidade para nos mostrar que há algo acontecendo na cena que se merece atenção. Confesso que eu não havia notado essa técnica até que minha namorada chamou a atenção e eu pude notar como a iluminação é "balanceada" ao desejo do diretor.

Truffaut disse certa vez que este era o filme mais poético de Hitchcock e talvez ele tenha razão, não só por conta do uso das cores e da luz, mas também pela trilha sonora marcante de Bernard Herrmann (em mais um trabalho com o diretor), que compôs músicas que ornam muito bem com o clima febril e delirante da obra. O roteiro não é muito poético e eu até arriscaria dizer que há nele alguns "buracos" que devem ter constrangido o diretor mais tarde quando avaliava rigorosamente os seus trabalhos. A estrutura da narrativa pode ser dividida entre o antes e o depois do evento que ocorre na torre da velha missão de São João Batista, que transforma a história em algo bem diferente do que era no início, através de um plot twist inocente e fantasioso como nos desenhos do Scooby Doo. A partir deste twist no roteiro, a história segue por caminhos um pouco mais obscuros, que muito me incomodaram pelo apelo violento e o comportamento agressivo do personagem de Stewart, que se converte em uma espécie de maníaco perturbado por um problema emocional e psicológico mal resolvido com a sua amada Madeleine. 

Há inclusive fortes conotações sexuais na relação entre o personagem de Stewart e de Novak, mas de maneira camuflada, porque a censura moral e institucional da época não permitiria nada muito além do que o filme mostra. Quando os dois protagonistas se encontram em um quarto de hotel e o homem pede a sua namorada que arrume o cabelo da maneira que ele deseja, não deixa de ficar evidente o comportamento machista naturalizado do protagonista, o que aos olhos do espectador comum em 1958 devia ser algo normal, mas que em uma visão mais politizada e moderna seria claramente uma conduta não apenas assediosa, mas de intenções muito mais sexuais do que a cena sugere. O próprio Hitchcock confirmou mais tarde que a cena no hotel nada mais é do que Novak tirando toda a sua roupa até ficar nua para o companheiro, mas que por força do moralismo do período se converteu em um pedido um pouco mais sutil do homem: "que ela arrumasse o cabelo". Uma cena de sexo, sem sexo. Perturbador, não é mesmo?

Como quase todas as obras que se tornam clássicos cult, o filme não foi grande sucesso de bilheteria e se não me engano foi a última produção de Hitchcock pela Paramount. O reconhecimento da obra foi um pouco mais tardio, talvez nos relançamentos da década de 80, e é até irônico pensar que só recentemente o filme foi restaurado com cuidado o suficiente para que nós possamos vê-lo em sua originalidade e qualidade. Dentro de sua contribuição para o cinema, talvez o maior legado de "Um Corpo que Cai" seja a popularização do uso do zoom como efeito de câmera para gerar no espectador a sensação de vertigem e queda, técnica replicada até hoje. Outra herança importante do filme foi o design gráfico moderno e irreverente dos créditos iniciais e finais, que deram à obra uma identidade visual tão forte ao ponto de ser comum ver o cartaz de "Um Corpo que Cai" sendo vendido até hoje em bancas de livrarias como um ícone da cultura pop cinematográfica. Tecnicamente falando, poucos filmes de Hitchcock chegam perto da qualidade de "Vertigo". Um filme para se apreciar.

Um comentário:

  1. É tão interessante perceber como que nossos olhares são diferentes e iguais ao mesmo tempo. No geral a gente sempre concorda com tudo, mas eu costumo reparar umas coisas que as vezes você nem da importância, e quase sempre quando eu comento você acha graça hahaha eu realmente reparo umas coisas bem específicas, o cabelo, o baby hair, a sombrancelha, o vestido que se destaca na cena, a unha, o jeito de andar... Mas também observo os efeitos, a iluminação, a posição da câmera e tento acertar o roteiro e mcguffin, rs. O roteiro é maravilhoso, com um plot twist pra dar mais emoção, e os efeitos para vertigem, sonhos e visadas são engraçados pra quem está assistindo hoje, mas que certamente foram revolucionarios pra sua época. Algumas cenas realmente me incomodaram, sendo absurdamentea assediosas e violentas, mas no geral o filme é muito bom, e ao meu lado ganha um plus: fica bom e engraçado HAHAHAHA

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