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sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Um Dia de Chuva em Nova York


Demorou, mas estreou em 2019 o filme do ano passado de Woody Allen. O cenário desta vez é...Nova York, como de costume nos filmes do diretor nascido e criado na metrópole norte-americana. Woody Allen está com 84 anos e seria de esperar que mais um filme em NY pudesse ser interpretado como um clichê ou uma comodidade perdoável para o cineasta já bastante idoso, mas a locação do filme, embora possa ser de fato um lugar comum (literalmente), tem um papel interessante na metalinguagem sutilmente inserida no texto de "Um Dia de Chuva em Nova York", uma obra bem realizada e digna do talento de seu criador.

Antes de mais nada, é preciso dizer que Woody Allen sofreu um grande revisionismo por parte de seu público. Digo isso porque há uns dez anos atrás (quando eu comecei a me interessar por cinema de verdade) gostar dos filmes de Allen era uma característica hipster, um status intelectual de jovens descolados a partir dos 17 anos de idade, recém ingressados na faculdade. Além disso, é claro, sempre existiram os fãs das demais gerações, que também tinham em comum a questão do refinamento cult, como se gostar de Woody Allen fosse um dos pré-requisitos para se caracterizar como um verdadeiro intelectual, somado ao gosto por vinho, gatos e discos de vinis.

É claro que digo isso com ironia, mas existe uma verdade por trás dessa definição do público fã do diretor. Hoje, em 2019, apreciar os filmes de Woody Allen já não é mais algo tão comum entre o público jovem, principalmente porque a atual geração passou a enxergar problematizações nos filmes do cineasta que antes não tinham muita reverberação, como a ausência de personagens negros e a abordagem constante de "problemas" típicos da vida burguesa norte-americana.

Woody Allen orienta Timothée Chalamet e Selena Gomez em tomada externa do filme. O diretor sempre foi antenado ao escolher os atores de suas obras.

Somado a estas problematizações, veio o esforço coletivo da juventude progressista da segunda década em "cancelar" o diretor, por conta de denúncias que Allen recebeu no contexto do movimento "MeToo". Em resumo, existe hoje uma tendência real entre pessoas jovens (especialmente grupos identitários) em ignorar por completo o trabalho do cineasta, justamente por causa das acusações de assédio que recebeu. Ora, qualquer pessoa que goste e entenda de cinema sabe que é impossível desconsiderar o trabalho de alguém como Woody Allen, que a despeito de qualquer problema em sua vida pessoal (denúncias e processos judiciais em que foi inocentado) é certamente um dos diretores e roteiristas mais influentes e importantes da história do cinema.

Digo isso tudo, pois pretendo comentar sobre "Um Dia de Chuva em Nova York" considerando os efeitos deste "cancelamento" que Woody Allen foi alvo tendo como base o próprio roteiro do filme e abordando a maneira como o diretor encontrou para tratar do assunto de forma inteligente e sem assumir uma posição de vítima no movimento que ele mesmo declarou apoiar: as denúncias de assédios na indústria do cinema dos EUA.

Elle Fanning e Woody Allen nos bastidores. Infelizmente, o diretor não atua no filme. O seu alter-ego parece ser o personagem de Chalamet, com alguns dos maneirismos intelectuais de Allen.

Bom, mas falando do filme, a história tem tudo aquilo que os filmes anteriores do diretor costumam abordar: relacionamentos amorosos, traição, metalinguagem com o cinema, papo cabeça sobre arte... O fio que conduz a narrativa é a viagem de seus dois protagonistas para Nova York. O jovem Gatsby (interpretado pelo excelente Timothée Chalamet) está acompanhando sua namorada estudante de jornalismo em uma viagem a trabalho para entrevistar o celebrado diretor Roland Pollard, uma oportunidade única. Ashleigh, a estudante, é interpretada por Elle Fanning, uma atriz muito talentosa cujo trabalho neste filme deve ser o melhor de sua carreira até hoje.

O curioso da história do filme é que Gatsby é na realidade um jovem de NY, que decide acompanhar a namorada justamente para lhe apresentar o melhor de Manhattan. Ele está com o bolso cheio dinheiro (porque é um ótimo jogador de pôquer) e reserva o melhor hotel e restaurante na cidade, mas fica bastante decepcionado quando descobre que todas as atenções de sua namorada estão voltadas à Roland Pollard.

Os protagonistas em um museu de arte, cena comum nos filmes de Woody Allen.

O diretor é representado no filme como um cineasta extremamente frustrado com o seu mais recente longa metragem e que parece estar atravessando uma crise na carreira, com a autoestima baixa em relação a sua capacidade como realizador. Há uma intenção muito clara de Woody Allen em caracterizar Rolan Pollard dessa maneira patética, como um artista fujão, de temperamento escorregadio, que afoga todas as suas mágoas na bebida e dando trabalho pra sua equipe de filmagem.

O roteirista do filme de Pollard (vivido por Jude Law) é representado de maneira semelhante, só que o deboche na construção desse personagem está na sua representação como um homem traído pela mulher com o seu melhor amigo, cuja decepção amorosa parece rapidamente desaparecer quando o traído se descobre magicamente apaixonado por Ashleigh (assim como todos os homens no filme, diga-se de passagem). Percebo essa questão como uma ironia e resposta de Woody Allen a tudo que viveu e ainda vive no contexto do "MeToo", transformando em arte e sarcasmo aquilo que poderia deprimi-lo ou fazê-lo desistir pra sempre de escrever e dirigir (como Pollard parece querer no filme).

O jovem Gatsby (Timothée Chalamet). O nome foi inspirado no protagonista do livro clássico de F. Scott Fitzgerald.

Em relação a personagem de Ashleigh, é natural que a crítica a enxergue como uma personagem pueril, de mentalidade caipira, inexperiente e estereotipada como a jovem rica norte-americana que não entende nada do que faz, mas pensa que entende. Aos olhos dos cineastas que ela convive, Ashleigh é um objeto de consumo ou uma musa inspiradora, dependendo de quem se apaixona por ela. Quando a jovem quase vai pra cama com um ator muito famoso (Diego Luna interpretando algo próximo de si mesmo), ela titubeia ao responder se possui um namorado ou não, sendo que Gatsby está lá fora nas ruas chuvosas de Manhattan desesperado para encontrá-la.

De fato, a personagem de Ashleigh é representada das piores formas possíveis, ao ponto de até seu comportamento ético ser questionado, mas conforme o filme avança percebemos na conclusão do roteiro a chave para compreender a personagem e o seu destino. Existe um contraponto feminino à personagem de Elle Fanning, que vamos falar adiante, mas antes é preciso analisar um pouco o papel de Gatsby na história.

A fotografia dos filmes de Woody Allen são sempre impecáveis.

Quando Gatsby se vê abandonado pela namorada em Nova York, cidade que tanto conhece, o jovem encontra um dilema: ele não pode revelar pra muitas pessoas que está na cidade, caso contrário terá que ir a um evento beneficente que sua mãe está organizando. Ele então caminha sem rumo por Manhattan, um elemento cômico interessante na história, até que esbarra com Shannon (Selena Gomez), irmã de uma antiga namorada da adolescência. Shannon tem uma personalidade totalmente diferente de Ashleigh. Ela é o contraponto que falei anteriormente: uma jovem metropolitana, sarcástica, de pensamento rápido. Com o tempo percebemos que existe muito mais em comum entre ela e Gatsby e que previsivelmente os dois vão se apaixonar.

Não deixa de ser curioso que o pouco tempo de afastamento entre o casal protagonista seja o suficiente pra que Gatsby descubra que existe entre ele e a cidade de Nova York uma ligação muito forte, antes quebrada pela saída do jovem da casa dos pais (que ele enxergava como conservadores), mas que sofre uma reviravolta quando sua mãe o revela que possui um passado devasso que enche o jovem Gatsby (tão boêmio quanto o seu nome sugere) de orgulho.

O espectador pode se perguntar ao fim do filme se gosta mais de Gatsby com Shannon ou Ashleigh, ou nenhuma das duas opções.

A conclusão da história me pareceu um tanto quanto cruel, porque deixa claro que Gatsby decide romper com Ashleigh somente porque a garota tem uma mentalidade e espírito singelos, pequenos para o seu intelecto cosmopolita. Além disso, é claro, está o fato de que ele já se apaixonou de vez pela urbana Shannon. Nessa perspectiva, a base do roteiro que sustenta o romance do filme é bastante limitada, mas ainda assim a história tem um recheio de muita qualidade, por causa do humor espirituoso de Woody Allen, o seu talento como diretor, a qualidade da fotografia e as auto-referências do cineasta, sempre encantado por alguns temas recorrentes nas suas obras (principalmente as filmadas na charmosa Nova York).

"Um Dia de Chuva em Nova York" é um filme de qualidade produzido com primor por um cineasta de 84 anos que ainda consegue, apesar das limitações naturais da idade, dialogar com a atual geração de cinéfilos que não o "cancelou". E sorte de quem consegue apreciar o seu trabalho, porque Woody Allen é cinema em seu estado mais puro.

3 comentários:

  1. Não sei se concordo que o Gatsby termina o namoro pq a Ashleigh tem um espírito e mentalidade singelos. Eu gostei do final e achei incrível quando eles rompem pq a vida que ele levava na verdade não era exatamente a que ele gostaria de seguir, mas sim mostrar e provar pra ele mesmo e pra sua família que ele era diferente deles. Ele quis levar uma vida diferente pra dizer "eu sou diferente de vocês, eu vou seguir por outro caminho" e isso inclui sua vida na cidade que estudava antes de ir passar o tal final de semana em NY, inclusive a namorada (que diga-se de passagem não foi tão legal com ele). O ponto é que quando ele descobre a verdade sobre o passado da sua família ele vê que toda essa busca dele por tentar se afastar era idiota, levando em conta os motivos que o fizeram querer essa ruptura (família conservadora), então ele percebe que a vida dele jamais poderia ser em outro lugar, tentando romper com a história dele, com quem ele era de verdade. A atual namorada fazia parte desse momento em que ele fugia de algo que nem era verdade. A real é que ele descobre que estava sendo "injusto" com seus pais e com ele mesmo. Ele resolveu ficar,ser quem ele sempre foi no final das contas, e dessa vez se livrar de tudo que ele construiu pra se afastar injustamente da vida que levava, e a Ashleigh fazia parte desse momento que ele decidiu romper.

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    1. O que me levou a crer que ele rompe com ela por causa da ingenuidade dela sobre certos assuntos é o fato de que no fim do filme ele faz uma citação e ela pergunta se é Shakespeare. É nesse exato momento que ele decide que vai ficar em Ny!

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    2. É, mas não é só isso. Acho que ela é uma pessoa que não entraria na vida dele se ele não quisesse ser diferente da família, entende? A vida que ele escolheu levar, inclusive a namorada, eram coisas que não tinham a ver com ele, mas que mesmo assim ele quis pra rejeitar a sua própria realidade.

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