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sábado, 5 de janeiro de 2019

Laranja Mecânica

Lançado em 1971, "Laranja Mecânica" é a adaptação do clássico livro homônimo de Anthony Burgess para o cinema, dirigido por Stanley Kubrick. É mais um dos filmes frequentemente citados como entre os melhores da sétima arte, daqueles que você necessariamente precisa assistir antes de morrer. Não deixa de ser curioso que uma obra com conotação violenta e que aborda uma temática tão espinhosa - que é o tratamento político da criminalidade e do criminoso pelo Estado - tenha ganhado tanto apreço pelo público jovem de todas as gerações que seguiram ao ano de 1971. Ironicamente, o sucesso comercial do filme entre a faixa etária dos adolescentes estremeceu a reputação de Kubrick como realizador e colocou em cheque o valor de um dos seus filmes mais controversos. Ainda assim, a violência estilizada de "Laranja Mecânica" ganhou a cultura popular para sempre.

A primeira tomada do filme é um assustador close no rosto de Alex (Malcolm McDowell), o protagonista da história. É preciso dizer que Malcolm, na época um jovem de menos de trinta anos, fez neste filme um dos maiores trabalhos de atuação da história do cinema. O talento do ator vai além das cenas em que ele evidentemente convence no papel de um jovem rebelde e delinquente morador do subúrbio de Londres, mas alcança também a sua descomunal capacidade em atender a todos os desígnios de Stanley Kubrick, um diretor famoso pelo perfeccionismo e pela exigência máxima de seu elenco. Malcolm McDowell, por ser o principal personagem e narrador da história, está presente em praticamente todas as cenas do filme e em algumas delas foi submetido a longos afogamentos e a uma tortura específica que mantinha de verdade os seus olhos abertos com o auxílio de uma ferramenta criada especificamente para esse fim, o que rendeu um episódio em que o ator abandonou o set forçando o diretor a encerrar aquele take.

O filme guarda a particularidade de não ter possuído um roteiro. Anthony Burgess chegou a escrever um texto para o filme, que foi recusado por Kubrick. O diretor então levava a sua cópia do livro original e avisava ao elenco qual página iriam gravar. O vocabulário do romance original de Burgess foi mantido, o Nedsat, uma mistura de inglês operário com palavras do russo. À primeira vista parece estranho compreender as palavras ditas pela gangue de quatro amigos vestindo roupas brancas e chapéus-coco preto, mas rapidamente assimilamos as gírias às palavras do nosso idioma. Moloko e drugue, por exemplo, são respectivamente "leite" e "amigo". Bem horrorshow. Os primeiros momentos da história são basicamente a prática gratuita de ultraviolência nas ruas de uma Londres futurista, mas estilisticamente bem atemporal. Os quatro jovens protagonistas saem por aí batendo em moradores de rua e estuprando mulheres, enquanto nós espectadores acompanhamos as cenas ao som de música clássica (especialmente a 9ª Sinfonia de Beethoven), uma proposital contradição de Kubrick. 

Os rolês dos amigos sociopatas, que se embriagam de leite batizado com substâncias provavelmente alcoólicas, incluem a invasão de mansões futuristas onde vivem membros da burguesia inglesa, leitores ávidos, militantes políticos, intelectuais ou praticantes de atividades físicas esotéricas. Quando Alex e os colegas estupram uma mulher pela primeira vez no filme, o líder da gangue canta "Singing in the Rain", clássica canção de Gene Kelly, em mais uma das contradições sonoras entre música e violência explícita. Alías, a violência não é propriamente explícita no filme, mas estilizada. Na cena em que Alex comete o homicídio que o leva a prisão, a câmera de Kubrick se desloca do rosto agonizante da vítima para um quadro pop na parede de sua casa. É que o ano de 1971 também reservava limites à violência de "Laranja Mecânica"... A prisão de Alex transmuta o roteiro da cidade para a prisão, onde o protagonista será inicialmente despido de sua individualidade para posteriormente se submeter a um pioneiro método que o faria alcançar a sua redenção.

De um jovem adolescente alienado que vivia com os pais e que desejava ingenuamente pela manhã que sua mãe tivesse "um bom dia na fábrica", Alex se vê transformado em um condenado a catorze anos de prisão por assassinato, abandonado pela família e traído pelos amigos. Na cadeia, Alex é obrigado a entregar todos os seus objetos pessoais e passa a ser identificado por um número de série pelo guarda da prisão, cuja representação é quase tão cômica quanto a que seria mais tarde a do personagem Sargento Hartman em "Nascido para Matar", de 1987. A maneira grosseira do guarda também lembra muito os personagens de John Cleese nos sketchs do Monty Python, o que marca ainda mais a obra como produto do ambiente inglês, com os modismos típicos de seus personagens.

A personalidade de Alex, que até então era marcada pelo sarcasmo e dissimulação, se torna aos poucos mais reservada, porque o jovem deseja a todo custo encurtar o seu tempo de prisão. Ele acaba conseguindo o que deseja quando se submete como voluntário a participar de um novo método para a restauração de criminosos e futura reinserção dos ex-detentos ao convívio em sociedade. O método, no entanto, não guarda nenhuma preocupação com a recuperação moral de seus pacientes e utiliza a prescrição de medicamentos associados à tortura para que os criminosos passem a reagir fisiologicamente de forma negativa quando vislumbrassem a possibilidade de cometer novamente os crimes a que foram responsabilizados. Ao fim de duas semanas, a completa regeneração de Alex é apresentada pelos criadores do método à comunidade londrina através de uma espécie de cena de teatro em que o jovem é testado até que renuncia aos seus instintos violentos e chega até mesmo a lamber as botas de seu agressor, em uma atitude conformista cristã de oferecer a outra face quando fosse agredido. Os próprios agentes de segurança pública proclamam explicitamente ao supostamente curar Alex: "não estamos preocupados com a ética elevada, mas apenas com a diminuição da criminalidade".

Ao deixar a prisão, Alex retorna para a sua casa e descobre que ele não é mais querido por seus pais e que existe um outro jovem vivendo em seu quarto. Aos poucos, percebemos que o comportamento impulsivo e dissimulado do jovem permanece o mesmo, embora suas reações enérgicas e violentas tenham sido contidas pela eficácia do método a que foi submetido. O protagonista precisa conviver não apenas com a castração de seus desejos agressivos mais íntimos, mas também com o estigma de criminoso que passa a carregar, já que sua história foi amplamente exposta na imprensa. O seu reconhecimento como delinquente por uma antiga vítima, inclusive, acaba levando ao linchamento de Alex por um grupo de moradores de rua. A saída da prisão é certamente o momento mais obscuro da obra e traz consigo uma grande ambiguidade no roteiro, herança do livro original de Burgess. É que o filme de Kubrick aborda os dois gumes da recuperação de Alex. Sendo a a obra um manifesto político crítico à condução equivocada da ressocialização de criminosos pelo Estado, o roteiro também aponta a relação dos familiares de Alex e de suas vítimas ao retorno à sociedade de um cidadão violento e sociopata.

Esta ambiguidade, associada ao final enigmático e a estilização das cenas de violência onipresentes no filme, fez com que "Laranja Mecânica" - apesar da recepção calorosa da crítica e de seu sucesso comercial - tenha sido mais tarde reavaliado pela forma como influenciou gerações de jovens atraídos pela rebeldia da gangue protagonista, tendo inclusive ocorrido casos de crimes cometidos na Europa  na década de 70 com evidente influência do filme de Kubrick. Isto aborreceu o diretor, que dois anos após o lançamento de sua obra ordenou que ela fosse retirada do mercado. Demorou 25 anos para que o filme fosse novamente distribuído na Inglaterra. Hoje em dia, a violência do filme seria soft se comparada à algumas produções posteriores cuja bestialidade foi escancarada.  Apesar de tudo isso, é inegável o caráter artístico de "Laranja Mecânica" e a importância da obra na filmografia de Kubrick, sendo depois de "2001- Uma Odisséia no Espaço" o filme mais importante e influente da carreira do diretor. 

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