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quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Roma

"Roma" é o mais novo filme dirigido, escrito e produzido por Alfonso Cuarón, aquele que é provavelmente o mais bem sucedido cineasta mexicano. O filme foi lançado brevemente nos cinemas - creio que por uma estratégia para participar em premiações - e logo depois estreou na Netflix, a plataforma que oficialmente o distribuiu. É uma produção mista entre México e Estados Unidos, falado em língua espanhola e mixteco, um dialeto ameríndio. Por conta do idioma falado, o filme jamais poderá disputar o Oscar na categoria principal (melhor filme)*, mas tem feito um enorme sucesso em outros festivais pelo mundo afora, tendo ganhado o Leão de Ouro em Veneza e o Globo de Ouro na categoria de melhor filme estrangeiro, roteiro e direção. 

Falar de "Roma" não é uma tarefa fácil, porque o filme tem fortes relações com a vida pessoal de Alfonso Cuarón durante a sua infância. A obra, no entanto, não tem a característica de auto-biografia e centra-se na figura da babá e empregada da família de Cuarón quando ele vivia com seus pais e irmãos em uma casa de classe média em "La Roma", um bairro da cidade do México, o que explica o título do filme. A história se passa em 1970 e nos apresenta a rotina da família em uma casa espaçosa e confortável, onde vivem um casal, seus quatro filhos e duas empregadas, uma delas Cleo, a protagonista da história. A relação de Cleo e a família para quem ela trabalha lembra bastante a dinâmica do filme chileno "A Criada", de 2009, embora no filme de Cuarón não exista um compromisso político tão explícito ao abordar as relações de trabalho de uma empregada doméstica e a sua invisibilidade dentro da casa onde trabalha e mora. Esta suposta omissão de Cuarón rendeu algumas críticas negativas ao diretor, que eu discordo efusivamente, porque o seu filme obviamente apresenta a história de Cleo a partir das impressões e memórias de uma criança. Há uma afetividade verdadeira em "Roma" que faz a obra ultrapassar a sua pretensa ação política ou de denúncia.

A fotografia em preto e branco (assinada pelo próprio diretor) e os posicionamentos da câmera de Cuarón são um espetáculo a parte no filme, rodado com a delicadeza e a técnica de quem sabe precisamente o que está fazendo. Os planos longos emulam com propriedade o passar do tempo dentro da casa onde Cleo trabalha, assim como o deslocamento lateral da câmera quase sempre parada. Há uma cena interessante em que uma das crianças, por brincadeira, acende todas as luzes da casa, obrigando a empregada a ter de ir de cômodo em cômodo para apagá-las. O diretor optou por criar um plano sequência longo, que nos coloca dentro daquela residência. O mesmo acontece quando vemos na cena de abertura do filme o chão da varanda da casa sendo lavado, varanda que durante o filme é tomada por cocôs de cachorro, o que sugere a passagem do tempo e a dificuldade de Cleo em, sozinha, dar conta de cuidar de um lugar tão grande onde moram tantas pessoas.

A solidão, aliás, é outro tema tratado com muita humanidade por Cuarón, isto porque tanto Cleo quanto sua patroa experimentam o abandono parental. No caso da patroa, o seu marido decide viver com a amante, deixando-a com as quatro crianças, sem dinheiro e sem escrever ao menos uma carta para os filhos. Dá para perceber no comportamento da mãe a dor da perda do homem que amava e ao mesmo tempo a necessidade de manter a força aparente que precisava transmitir aos filhos tão jovens. No caso de Cleo, em uma sequência dolorosa dentro de um cinema, vemos o seu namorado deixá-la insensivelmente após descobrir que seria pai. Nesta cena, a câmera de Cuarón mais uma vez nos faz cúmplices da protagonista. No caso da empregada não há apenas abandono, mas também violência por parte do pai de seu filho, que promete matá-la caso a jovem insistisse que ele era o pai da criança. Mais tarde, próximo de dar a luz, Cleo vê o seu ex-namorado de posse de uma arma no epísódio do "El Halconazo", massacre de estudantes ocorridos no México em 1971, onde mais de 120 pessoas foram mortas.

Os fãs um pouco mais atentos do diretor vão perceber que na cena em que a família vai ao cinema assistir ao filme "Sem Rumo no Espaço", de 1969, é possível notar uma auto-referência de Cuarón quanto às suas influências para escrever e dirigir "Gravidade", de 2013, o filme mais bem sucedido de sua carreira e que lhe rendeu o Oscar de melhor diretor. Na realidade, a tomada que vemos é muito parecida com as cenas em que Sandra Bullock vagueia pelo espaço, em um filme que merece um post especial. Esta auto-referência foi a única que percebi, mas existem alguns outros elementos saudosistas no roteiro, como o fato da história se passar no México e o idioma falado em espanhol. É importante notar que desde "E Sua Mãe Também", de 2001, que o diretor não filmava no país natal, já que a sua carreira deu uma guinada para o cinema comercial depois que Cuarón chegou a dirigir até mesmo um filme da franquia Harry Potter. 

"Roma" é um filme importante, delicado, emocionante. É uma obra de arte perdida no catálogo da Netflix, com pouco mais de duas horas de duração. Deve ter sido uma experiência diferente vê-lo no cinema, sem as interrupções que as plataformas de streaming muitas vezes nos obrigam. O crítico Marcelo Janot destacou o "humanismo que transborda de cada frame" da obra de Cuarón e, de fato, é difícil não assistir "Roma" e não dar mais atenção aos detalhes do nosso próprio lar, de nosso próprio cotidiano. Pequenos detalhes me chamaram a atenção na história, como a empregada que segura o cão pela coleira quando sua patroa guarda o carro na garagem. Isso parece tanto a minha própria infância. O bom cinema é o que cria essa identificação entre público e personagens, sobretudo quando nós latino-americanos percebemos que nos parecemos em tantos sentidos uns com os outros. Vida longa a Alfonso Cuarón. E podem dar outro Oscar pra ele de uma vez!

*ERRATA: O filme acabou sendo indicado ao Oscar de Melhor Filme, uma vez que o filme falado em língua estrangeira pode sim ser indicado ao Oscar na categoria principal, desde que tenha cumprido alguns requisitos, como premiê em Los Angeles. Poucos filmes conseguiram esse feito.

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