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segunda-feira, 6 de maio de 2019

Ilha das Flores

Falando em curta-metragem, resolvi escrever algumas palavras sobre "Ilha das Flores", que foi eleito recentemente pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) como o melhor curta-metragem do cinema nacional de todos os tempos. O filme foi dirigido por Jorge Furtado em 1989 e curiosamente eu o assisti duas vezes esse mês, enxergando nele algumas limitações sobre a maneira como conceitua "família" e me questionando se o filme de fato pode ser encaixado no gênero documentário, como normalmente é considerado pela crítica. A obra aborda a temática do consumismo, do capitalismo, da destruição do meio ambiente e da desigualdade social em Porto Alegre, terra natal de seu diretor, se valendo de uma narrativa de tom bem humorado até chegar a um clímax desconfortável e chocante.

O curta de Jorge Furtado é narrado a todo momento pelo brilhante ator Paulo José e tem como partida o cotidiano de uma dona de casa, nos apresentando de maneira ironicamente didática conceitos básicos como "ser humano", "tomate", "dinheiro" e "perfume". O filme parte das atividades domésticas de "Dona Anete" até chegar a um aterro de Porto Alegre denominado "Ilha das Flores". O tomate descartado pela dona de casa e considerado impróprio para o seu consumo e de sua família é então jogado aos porcos por um criador, até que os próprios animais recusam o tomate, que finalmente será consumido por seres humanos famintos que vivem na miséria. O curta é bastante explícito em sua mensagem sobre os caminhos percorridos pelo vegetal, do lixo de uma família de classe média até a barriga de cidadãos reduzidos a condição de animais - ou melhor, colocados abaixo da posição de animais, uma vez que ingerem aquilo que os porcos recusaram.

A mensagem é claramente humanista, porque o filme reforça a todo momento que aqueles seres que vivem no lixo possuem características físicas e orgânicas idênticas a de "Dona Anete", mas que no entanto são obrigados a viverem em condições piores que a de porcos. A desigualdade social é abordada de maneira crua, como uma navalha na carne. Há na concepção do curta uma atmosfera pessimista, sobretudo no texto do crédito inicial, que diz "Deus não existe", o que lhe rendeu a crítica de uma obra materialista. A Igreja Católica, no entanto, reconheceu o valor do filme, premiando-o com a "Margarida de Prata" da CNBB, em 1990. Prêmios não faltaram para o filme de Jorge Furtado, frequentemente reconhecido como nossa curta-metragem por excelência, figurando inclusive no livro "1001 Filmes para Ver Antes de Morrer", publicação estrangeira. 

Acredito que há limites para caracterizar o curta como um documentário, porque a estrutura é por si só ficcional, já que realismo mesmo só parece existir nas cenas finais no aterro em Porto Alegre. As tomadas dos adultos e crianças famintos na Ilha das Flores é montada como em uma fotografia, mesmo que isso não diminua o aspecto triste e revoltante da cena. A música de encerramento da obra - a vinheta patriótica da "Voz do Brasil" tocada na guitarra - acompanha a leitura pelo narrador da definição de liberdade para a poetisa Cecília Meireles, em contraste com as imagens da vida sem dignidade dos habitantes do aterro que dá nome do curta-metragem. Ao terminar de assistir o filme, o espectador de classe média ou alta naturalmente enxergará uma relação direta entre o seu consumo diário e a vida sofrida daqueles atingidos pela desigualdade social provocada pelo capitalismo. Materialista ou não, "Ilha das Flores" é certamente uma obra de cunho político cujo maior potencial é fazer nos sentirmos mal por vivermos em um mundo tão injusto, onde a liberdade é privilégio de poucos.

2 comentários:

  1. Um curta que aparentemente é tão bobinho e tenta ate ser meio cômico, te da no final um murro no estômago. Chega a ser irritante a estrema didática e perturbador o desfecho.

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  2. Um soco no estômago disfarçado de um curta despretensioso. O início repetitivo e simples da um tom cômico, que mais tarde te bloqueia as expressões. Um gradual entre o leve e o pesado.

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