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terça-feira, 20 de agosto de 2019

Era Uma Vez em Hollywood

Este é o mais novo filme de Quentin Tarantino, uma produção caríssima e de grande ambição cinematográfica, que deve entrar para a filmografia do diretor como sua obra mais metalinguística e autorreferencial, sintetizando o estilo e a marca de um dos maiores cineastas da história dos Estados Unidos. "Era uma Vez em Hollywood", de 2019, é uma carta de amor de Tarantino ao cinema e à Hollywood da década de 1960, mesclando personagens reais com histórias fictícias concebidas dentro da mente insana de seu criador. O longa foi inicialmente anunciado como o filme que contaria a história do assassinato de Sharon Tate, atriz de Hollywood que de fato foi assassinada em agosto de 1969 aos 26 anos e grávida de nove meses. Ao longo do desenvolvimento do filme nós percebemos, no entanto, que o objetivo de Tarantino é muito menos contar a história de Tate do que demonstrar a vida em Los Angeles no fim da década de 60, sob a perspectiva de dois personagens fictícios: Rick Dalton e Cliff Booth.

Rick Dalton é interpretado por Leonardo Di Caprio e Cliff Booth por Brad Pitt. Essa dupla de grandes atores não foi uma escolha fortuita de Tarantino. Tanto Di Caprio quanto Brad Pitt são certamente os dois grandes atores norte-americanos nascidos na década de 1960 e, portanto, produto da geração que vemos na tela em "Era Uma Vez em Hollywood". Nem é preciso dizer o quanto estes dois atores são competentes em suas atuações, até porque o espectador deve contemplar por si mesmo o talento especial de Brad Pitt como um dublê meio fracassado de Hollywood, de comportamento agressivo e histórico misterioso, que vive à sombra de seu patrão Rick Dalton, este sim um ator de maior prestígio, que no entanto vivencia um declínio em sua carreira. A atuação de Di Caprio é boa como sempre, mas vale destacar que o ator está quase o tempo todo realizando uma meta-interpretação, em filmes dentro do filme. Por isso Brad Pitt consegue roubar a cena, principalmente porque o seu personagem tem um carisma capaz de conquistar o público, especialmente quando a sua personalidade destemida e segura é contrastada com o espírito folgado e despreocupado de um bando de hippies que ocupam o papel de vilões na história.

Sharon Tate é interpretada por Margot Robbie, uma grande atriz que neste filme foi muito podada por Tarantino, afinal de contas seus trabalhos em "O Lobo de Wall Street" e "I, Tonya" são muito mais consistentes e memoráveis. Mesmo assim, Margot consegue representar com muita qualidade uma Sharon Tate que nada mais era do que uma jovem atriz ainda muito deslumbrada com a sua vida e recém iniciada carreira de atriz em Hollywood, onde morava ao lado de seu marido, o diretor polonês Roman Polanski. Este trio de atores: Brad Pitt, Di Caprio e Margot Robbie, são os responsáveis por toda a evolução e andamento do filme, ainda que o elenco seja repleto de muitos outros atores e atrizes importantes, tais como Al Pacino e Bruce Dern, mesmo que sub-utilizados pelo diretor, o que só é possível mesmo em filmes de alto orçamento. Curiosamente, Pacino e Dern são atores contemporâneos de Sharon Tate e já trabalhavam em Hollywood quando a jovem atriz foi assassinada, não sendo improvável que tenham se conhecido em algum momento de suas carreiras. Há ainda algumas pequenas pontas de Dakota Fanning (como uma hippie blasé), Kurt Russel e o próprio Tarantino como a voz do diretor na cena pós-créditos.

Tecnicamente falando, Tarantino está mais uma vez impecável. Todos os elementos que diferenciam o diretor estão presentes em seu novo filme: a metalinguagem, a violência explícita e os roteiros prolixos cuja eloquência muito me pareceu um exercício vaidoso do diretor, como se ele estivesse escrevendo e dirigindo para satisfazer o próprio ego em alguns trechos do filme. Nada de novo, considerando o histórico de Tarantino. A trilha sonora é eclética, misturando muitas canções de vários gêneros, todas elas de algum forma relacionadas ao contexto histórico do filme, mas também relacionadas à própria filmografia de Tarantino, que por sua vez é autoreferenciada em vários momentos do longa. Esta metalinguagem se manifesta especialmente no constante apelo à temática western e à histórias inventadas sobre os bastidores de Hollywood, como no divertido sketch de Bruce Lee ou nas referências ao faroeste espaguete de Sergio Leone. O próprio protagonismo de um ator em decadência e seu fiel escudeiro dublê já são uma maneira de forçar o roteiro pelos caminhos da intimidade dos bastidores de Hollywood, em que Tarantino pôde se sentir a vontade para brincar sobre os processos de memorização de textos, preparação de personagens e até mesmo filmagem de cenas inteiras da série western que existe dentro do filme e ocupa um bom pedaço dos 161 minutos de "Era uma Vez em Hollywood".

O assassinato de Tate se torna um elemento secundário no filme, até porque somente na segunda metade da história (que súbita e ironicamente se torna narrada pela voz de Kurt Russel) é que vemos a cronologia da noite do crime se delinear no roteiro. Neste ponto é preciso um alerta aos espectadores que ainda não assistiram ao filme: vale a pena ler um pouco sobre a história de Sharon Tate antes de ir ao cinema, mas frise-se: somente a história real de Sharon Tate! Qualquer leitura prévia sobre o roteiro de "Era Uma Vez em Hollywood" pode significar ter a sua experiência no cinema absolutamente arruinada, tanto é que que o próprio Tarantino pediu ao público do festival de Cannes que não espalhasse em suas críticas spoilers do roteiro. Falando em crítica, boa parte da opinião especializada destacou neste filme uma certa diminuição da violência típica do diretor, o que na realidade não foi exatamente um abrandamento da violência, mas apenas a sua restrição a dois pontos específicos da história, ambos explicitamente sanguinários. Mais uma vez, assim como em "Os Oito Odiados", as cenas violentas me incomodaram, especialmente porque foram aplaudidas com entusiasmo pelo público. Sempre que isso acontece, me questiono se a intenção do diretor era realmente provocar risadas da plateia.

Em "Era Uma Vez em Hollywood" vemos um Tarantino sem pressa, cada vez mais maduro e aparentemente despreocupado em escrever e dirigir filmes tão somente para agradar a crítica e sua legião de fãs, mesmo que as cenas de violência possam ser interpretadas como breve fan service, sem as quais o público poderia deixar as salas de cinema acusando-o de heterodoxia. Quem assistiu todos os filmes do diretor consegue observar claramente o aprofundamento de seus roteiros e o direcionamento cada vez maior à abordagem do próprio cinema, de maneira que Tarantino possa usar todo o seu conhecimento enciclopédico sobre filmes exatamente para produzir aquilo que desejar dentro da sétima arte. Em seus roteiros, fica muito claro que o escritor deixou de falar sobre qualquer tema da cultura pop que o agrade para falar sobre o cinema e seu processo criativo. Sob certa perspectiva, não resta dúvidas de que o que Tarantino está produzindo é nada mais nada menos do que obra de arte. O título da obra (homenagem direta ao filme quase homônimo de Sergio Leone) se mostra muito justificável na cena final, porque vemos ali não apenas a real intenção de Tarantino ao escrever esta história, mas até mesmo uma certa ternura do diretor ao corrigir injustiças e acertar as contas com o passado de Hollywood. Obra-prima. 



Um comentário:

  1. Eu gosto mais desse filme agora que passou um tempinho do que quando fomos assistir kkkk to voltando atrás em algumas coisas...

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