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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Indústria Americana


"Indústria Americana" é um filme norte-americano de 2019, vencedor do Oscar na categoria "melhor documentário" e a primeira produção da companhia fundada por Barack e Michelle Obama, a Higher Ground Productions. O longa dirigido por Steven Bognar e Julia Reichert foi distribuído pela Netflix e acumulou outros prêmios importantes desde o seu lançamento.

Na cerimônia do Oscar, teve como adversário o documentário brasileiro "Democracia em Vertigem", já comentado aqui no blog. Mas enquanto o filme da cineasta Petra Costa abordou a história recente da política brasileira, o longa norte-americano (de caráter menos editorial) provoca reflexões sobre o avanço da indústria chinesa nos Estados Unidos, as relações de trabalho no capitalismo e o choque cultural entre trabalhadores das duas maiores economias do mundo. É, portanto, um filme mais universal.

Os diretores Steven Bognar e Julia Reichert acompanhados dos produtores do filme, o casal Obama.

O ponto de partida de "Indústria Americana" é a falência de uma fábrica da General Motors em Dayton, Ohio, no contexto da crise econômica que os EUA vivenciaram em 2008. Foram muitas as indústrias que fecharam as portas naquela época, demitindo milhares de funcionários de uma só vez. As cenas iniciais do documentário mostram exatamente a desolação de alguns norte-americanos ao constatarem que perderam seus empregos de décadas em uma das mais importantes montadoras de carro do país.

Esta desolação, no entanto, é superada por um clima de grande otimismo quando descobrimos que um empresário chinês chamado Cao Dewang decidiu investir meio bilhão de dólares na antiga fábrica da GM, para transformá-la em uma filial norte-americana da Fuyao Glass, uma bem sucedida fabricante chinesa de vidro automotivo. Por si só, este enredo inicial já poderia ser o tema de uma bela ficção sobre trabalho, sindicatos e capitalismo. Sendo uma história verdadeira, o filme se torna ainda mais interessante.

Cao Dewang, o empresário orgulhoso, é um dos personagens mais interessantes do filme.

Os diretores do filme tiveram amplo acesso à filial da fábrica chinesa, o que me espantou bastante considerando que o documentário muitas vezes mostra mais do que deve, ou pelo menos nos mostra mais do que um empresário prudente autorizaria. Este amplo acesso que os realizadores do longa tiveram à fábrica e seus funcionários é explicado em um breve bate-papo que eles tiveram com o casal Obama (também disponível na Netflix), onde a dupla de diretores fala sobre como fizeram para conquistar a confiança de Cao Dewang para filmar quase tudo o que desejavam na indústria de vidros, entrevistando funcionários e até mesmo acompanhando executivos da empresa em viagens.

Segundo os diretores, o investidor chinês sabia que não se tratava de uma filmagem com objetivos publicitários mas ainda assim permitiu que os cineastas acompanhassem o desenvolvimento da fábrica, inclusive nas fases em que tiveram mais dificuldades operacionais. Creio que a postura transparente de Dewang está associada ao seu espírito orgulhoso e a sua convicção de que os chineses são melhores do que os norte-americanos para conduzir uma fábrica.

Operária norte-americana em ação na Fuyao Glass. Os trabalhadores da fábrica são peças importantes na construção do discurso do documentário.

O princípio do documentário, que mostra os momentos iniciais de instalação da indústria, é marcado por um grande clima de otimismo entre os chineses e um certo alívio dos norte-americanos que deixaram de ser desempregados. Há uma ironia no fato de uma empresa dos EUA falir e ser substituída por uma gigante chinesa que decidiu investir no país e consequentemente empregar cidadãos norte-americanos, como em um processo inverso de colonização que o capitalismo do século XXI tornou possível.

Afinal de contas, não é sempre que vemos norte-americanos sub-empregados comandados por chineses que possuem a absoluta certeza de que sabem fabricar vidros melhor do que os operários dos Estados Unidos. Este contraste entre os chineses detentores do conhecimento e os norte-americanos aprendizes na arte de fabricar vidros no "padrão-China" faz com que o período de adaptação da empresa nos EUA seja marcado por um grande conflito cultural entre os trabalhadores dos dois países.

A improdutividade dos norte-americanos, em contraste com a eficiência chinesa, é uma das razões para o choque entre as duas culturas.

Um dos momentos mais interessantes do filme é quando a empresa chinesa, bastante preocupada com a incapacidade produtiva dos norte-americanos, decide levar um grupo seleto de trabalhadores para a sede da fábrica na China, onde eles participarão de uma visita técnica para serem capacitados a liderar e produzir como os chineses. Os norte-americanos se deparam na China com um ritmo de trabalho de disciplina militar, trabalhadores submetidos a jornadas de trabalho extenuantes, com poucas folgas, direitos trabalhistas e péssimas condições de trabalho. O mais sombrio disso tudo é que, apesar da precariedade das leis trabalhistas (ou melhor, por causa dela), a produção chinesa é eficiente, rápida e de qualidade.

Não é por acaso que um dos visitantes norte-americanos se mostra muito empolgado em levar para o próprio país a disciplina chinesa no trabalho, o que ele acaba de fato fazendo, mas que se revela um desastre. Existe no discurso dos norte-americanos a ideia de que a mentalidade livre do seu povo jamais permitiria que eles se submetessem às condições que os chineses se submetem: "chineses gostam de trabalhar, americanos gostam de ganhar dinheiro", como um dos personagens constata.

O modelo chinês de organização do trabalho envolve motivar operários, através da arte, quanto a importância da sua produção e eficiência. 

Há uma forte visão humanista dos trabalhadores da fábrica, humanizados pelo documentário em seus discursos, onde falam da vida pessoal, contam sobre as suas famílias e até mesmo mostram o interior de suas casas. O documentário tenta investigar o que leva os chineses a deixarem o seu país para trabalhar em uma fábrica nos EUA treinando norte-americanos, com um ritmo de trabalho tão diferente deles. Boa parte dos chineses sente saudades das suas famílias e um deles se envolve emocionalmente com um colega norte-americano, que se torna seu amigo.

É como se os chineses estivessem fazendo um sacrifício em prol de seu país, uma ideia retomada nos minutos finais do documentário. Quanto aos norte-americanos, o filme mostra como a falência da GM e a sua posterior contratação por uma empresa chinesa comprometeu sua qualidade de vida, que tiveram salários reduzidos em mais da metade. Uma das trabalhadoras da fábrica mostra o lugar onde mora, de maneira pouco digna no sótão da casa de sua irmã, uma cena bastante tocante, mesmo considerando que o seu padrão de vida ainda é melhor do que muitos chineses e brasileiros por aí afora.

Operários norte-americanos, tratados no filme também em suas individualidades na vida pessoal e doméstica.

Nos últimos trinta minutos do documentário, acompanhamos a fase mais difícil da implantação da empresa chinesa nos EUA, que é o momento em que os seus trabalhadores, diante da progressiva inserção do modelo chinês de organização do trabalho, decidem se sindicalizar. Desde o princípio do filme, já sabemos que os chineses são contra os sindicatos norte-americanos (na China sindicatos são organizações aliadas às fábricas, e não aos funcionários), de modo que a empresa se coloca abertamente contrária à afiliação de seus trabalhadores.

Até uma empresa é contratada para oferecer cursos e palestras no sentido de desmotivar os trabalhadores da fábrica a aderirem ao movimento sindical, que acaba sendo derrotado na votação que decidiria pela assinatura de um contrato coletivo de trabalho com a empresa. O filme então envereda para uma discussão política, já que, mesmo sem uma tomada de posição explícita, os cineastas demonstram que os chineses estão mesmo interessados em funcionários acríticos, produtivos e obedientes. O próprio fundador da fábrica, Cao Dewang, reconhece que os chineses estão destinados a se sacrificarem pelo trabalho e progresso do país (mesmo que ele reconheça que era mais feliz nos tempos da China pré-industrial).

"Indústria Americana" provoca muitas reflexões sobre o avanço do capitalismo, as relações de poder entre os homens e o papel do ser humano na indústria como uma engrenagem facilmente substituída por máquinas mais eficientes, mais econômicas e muito menos exigentes. Ao terminar o filme, é impossível não ficar assustado com o nosso futuro neste planeta.

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