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domingo, 29 de março de 2020

Um Estranho no Ninho


"Um Estranho no Ninho", filme de 1975, nasceu primeiramente de uma iniciativa de Kirk Douglas. O lendário ator norte-americano comprou os direitos do livro "One Flew Over the Cuckoo's Nest", de 1962, e o adaptou para uma peça de teatro naquele mesmo ano, onde ele atuou como produtor e ator protagonista.

A peça não fez o sucesso que Kirk esperava e ficou pouco tempo em cartaz, até que um dia o ator perguntou ao diretor tcheco Miloš Forman se ele tinha interesse em dirigir um filme baseado no livro que ele tinha os direitos. Passaram-se dez anos até que um erro de comunicação foi resolvido e o projeto foi tocado adiante, só que desta vez com Michael Douglas assumindo o papel de produtor, dando continuidade a um projeto de seu pai.

Kirk Douglas como o protagonista da peça de teatro que se tornaria anos mais tarde o filme "Um Estranho no Ninho".

O filme era um projeto de baixo orçamento, o que provavelmente justifica a contratação de Miloš Forman, que até então era um diretor pouco conhecido em Hollywood. O roteiro do longa foi escrito com grande fidelidade ao texto original do romance de Ken Kesey, mesmo que algumas alterações na história original tenham sido feitas ao longo das gravações. A produção do longa queria um grande ator para o papel principal e convidou de imediato Gene Hackman, que recusou a proposta, o que também aconteceu com Marlon Brando.

A terceira opção foi Jack Nicholson, que já tinha uma coleção de bons trabalhos na indústria e desfrutava do prestígio dos produtores, principalmente por causa de "Easy Rider", de 1969. Para a personagem feminina mais importante da história, a produção também recebeu algumas negativas de atrizes célebres até chegar à Louise Fletcher, que era praticamente uma estreante à época. 

1 filme e 5 Oscars. Da esquerda para a direita: o produtor Michael Douglas, o diretor Miloš Forman, Louise Fletcher, Jack Nicholson e o produtor Saul Zaentz.

Como o filme conta a história de um homem preso que é transferido para um hospital psiquiátrico, a produção do longa locou um hospital real e em atividade para as gravações, empregando inclusive o diretor da instituição como ator para interpretar algo próximo de si mesmo. O elenco ensaiou durante apenas uma semana, período em que ficaram mais ou menos confinados no hospital dando vida a seus personagens em um processo criativo bastante inusitado. Embora Jack Nicholson já fosse à época uma grande estrela, todos os demais atores homens do filme eram artistas pouco conhecidos do público em 1975, sendo que alguns deles se tornaram mais tarde atores notáveis, principalmente Christopher Lloyd e Danny Devito.

O diretor Miloš Forman extraiu de seu elenco uma grande interpretação mesmo com pouca intervenção nos seus trabalhos individuais, exigindo apenas que todos eles buscassem o máximo de naturalidade em suas representações. A ambientação real do hospital psiquiátrico exerceu grande influência em todos os atores, de maneira que em alguns momentos eles sequer sabiam que estavam sendo filmados e recebiam do diretor apenas a ordem de "estar" no hospital.

O elenco em cena. Um dos segredos do diretor era a ambientação realista dos atores no hospital psiquiátrico.

Por conta dos métodos de Forman e também do grande talento do elenco, o filme de fato alcança o realismo e a naturalidade esperada pelo diretor. Filmado praticamente em cenas internas durante o inverno, o longa evoca uma certa melancolia e sensação de claustrofobia que o ambiente de um hospital psiquiátrico estimula, tão semelhante a uma prisão. Aliás, o mote do filme é justamente esse: existe a desconfiança por parte da instituição psiquiátrica sobre a insanidade de McMurphy (o prsioneiro/interno interpretado por Jack Nicholson), que pode ser um mero subterfúgio para fugir da cadeia.

Mesmo nós espectadores não nos sentimos em um posição muito privilegiada para julgar se McMurphy é ou não um homem insano, até porque nos faltam elementos para classificar alguém dessa maneira. Existem no filme tipos bastante diferentes de internos no hospital: desde aqueles que vegetam em suas camas e nos salões da ala hospitalar até aqueles que aparentemente não tem comprometimento nenhum.

McMurphy comanda uma festa dentro do hospital psiquiátrico, testando os limites da enfermeira vilã.

A vencedora do Oscar Louise Fletcher em um papel marcante como a enfermeira Ratched.

A vilã da história, se é que podemos chamá-la assim, é a enfermeira Ratched, interpretada por Louise Fletcher. Ela é uma profissional diligente, que a princípio nos engana como uma mulher doce e compreensiva. Embora alguns possam descrevê-la como sádica, penso que ela é somente uma profissional que acredita naquilo que faz. Como chefe, é ela a responsável por administrar remédios aos pacientes, monitorar o seu comportamento e conduzir uma sessão de terapia em grupo, onde ela serenamente expurga dos pacientes traumas pessoais, envolvendo relacionamentos amorosos e familiares.

McMurphy elege Ratched como sua inimiga dentro da instituição e promete aos colegas que irá tirá-la do sério durante sua passagem pelo hospital. Os dois personagens são contrapontos importantes na história: McMurphy como o interno que não aceita as privações e o confinamento do hospital psiquiátrico; Ratched como a vertente científica e racional do manicômio como lugar possível para o tratamento de doentes mentais. O embate entre os dois personagens pode significar algo muito além do livro e do filme: um embate político a respeito da humanidade no tratamento de pessoas com doenças psiquiátricas.

Um jogo de basquete pouco convencional, sem muito apego às regras.

Há uma grande poesia na maneira como vemos McMurphy se relacionar com os colegas no hospital. Mesmo sabendo o crime que cometeu, um estupro de menor, não estamos aptos a julgá-lo como um ser humano saudável ou insano. O que significa afinal a normalidade? McMurphy ao entrar no hospital traz para dentro dele questionamentos sobre a liberdade e sobre o próprio sentido da vida, ali desperdiçada. Um dos momentos mais notáveis da obra é quando o protagonista foge com boa parte dos pacientes para uma pesca clandestina. Já seria uma cena interessante se alguns minutos antes não o víssemos descobrindo que o diretor do hospital é amante da pescaria também. Outro momento célebre da obra é quando a enfermeira Ratched nega aos pacientes o direito de ver um jogo de beisebol. Indignado, McMurphy convida todos a assistirem uma partida fictícia na TV, algo que funciona perfeitamente bem naquele espaço de constante dúvida entre o que é real e o que é imaginário.

"Um Estranho no Ninho" é uma obra de arte sobre a humanidade dentro de cada um de nós, sobre a liberdade e a importância de se relativizar a noção de "normalidade". O filme tem uma peculiaridade - em 1976 ganhou os cinco prêmios principais do Óscar: Melhor Filme, Direção, Roteiro, Ator e Atriz. Recomendado!

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