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quinta-feira, 2 de abril de 2020

O Pianista


"O Pianista", de 2002, foi o filme que deu o primeiro e único Oscar da carreira do célebre e controverso diretor franco-polonês Roman Polanski. A obra é baseada no livro autobiográfico de mesmo nome escrito pelo pianista polonês Władysław Szpilman e o roteiro adaptado (também vencedor do Oscar) foi assinado por Ronald Harwood, que mais tarde escreveu "O Escafandro e a Borboleta", de 2007.

Este importante filme sobre o holocausto urbano ocorrido na cidade de Varsóvia no início da Segunda Guerra Mundial é frequentemente citado como uma das obras mais notáveis e reconhecidas sobre o tema, tendo vencido uma série de prêmios no ano de seu lançamento, incluindo a Palma de Ouro no Festival de Cannes.

Roman Polanski na entrega da Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2002. Ao longo de sua carreira, o diretor também já foi premiado no Festival de Berlim, César, BAFTA, Globo de Ouro e Oscar. 

Hoje o nome de Polanski é muito associado ao abuso de uma menor que cometeu na década de 70 e a sua consequente condenação nos EUA e fuga para a Europa, onde se estabeleceu desde então e tem produzido continuamente obras premiadas. Em 2002, o que se falava sobre Polanski é que ele havia produzido e dirigido um filme bastante conectado com sua própria biografia, já que ele e sua família viveram na Polônia no início da guerra mundial. A família do diretor foi capturada pelos nazistas e somente ele e o pai sobreviveram ao Holocausto, tendo Polanski entrado no mundo do cinema e ido trabalhar na Inglaterra anos mais tarde.

Com o sucesso de seus primeiros longas, o diretor acabou sendo convidado para filmar nos Estados Unidos. Em Hollywood, Polanski produziu uma de suas obras primas, o clássico do terror "O Bebê de Rosemary" (1968), que o colocou na crista da onda dos diretores estrangeiros vivendo nos EUA. Um ano depois, sua carreira sofreu um baque: sua esposa grávida, Sharon Tate, foi assassinada por um grupo de fanáticos em Los Angeles, história contada no excelente "Era uma Vez em Hollywood" (2019), de Quentin Tarantino.

Roman Polanski e Sharon Tate, por volta de 1968. A história do trágico assassinato da atriz foi parcialmente contada no filme "Era uma Vez em Hollywood", de Quentin Tarantino.

Ao anunciar que faria um filme sobre os horrores do nazismo na Polônia, a trajetória de Polanski colocava o diretor no lugar de uma autoridade que havia vivido na pele aquele momento histórico. O filme tem um ritmo lento e narra a história do músico Szpilman a partir da perspectiva do sobrevivente polonês. A câmera de Polanski, sempre muito bem posicionada, nos convida a conhecer a história do pianista acompanhando cada momento de sua luta pela vida no gueto de Varsóvia, uma concentração compulsória de judeus criada pelos alemães na Polônia invadida por Hitler.

Como todo filme do gênero, nós espectadores testemunhamos a progressiva decadência da humanidade dos judeus imposta pelos nazistas, através das privações financeiras e alimentares do início da guerra, a separação das famílias e o sadismo dos oficiais alemães, muitas vezes aliados de poloneses não-judeus. Szpilman, por ser um músico conhecido em Varsóvia, consegue através de sua pouca influência chances de escapar da sua inevitável morte, em sequências angustiantes que o diretor soube arrancar de seus ofegantes espectadores alguma expectativa, mesmo que pequena.

Adrien Brody como o pianista Szpilman. Ao fundo, vemos os muitos judeus aguardando suas transferências para campos de concentração.

A interpretação vencedora do Oscar do ator Adrien Brody, que faz Szpilman, é memorável. Sua atuação contida consegue transparecer a personalidade fria do pianista polonês, que mesmo aparentemente muito sóbrio consegue tirar de dentro de si a humanidade e a esperança necessária para sobreviver aos horrores da guerra.  A câmera de Polanski busca um realismo capaz de nos ferir, mesmo que muitas vezes peque por apresentar uma versão bastante arranjada dos horrores nazistas. O diretor posiciona cuidadosamente corpos e sangue nos quadros por ele filmados como se pintasse uma tela naturalista do horror.

Somado a isso, o filme tem no sadismo alemão a sua válvula de escape para nos sacolejar quando a fuga de Szpilman parece muito enfadonha ou repetitiva, não sendo raros os momentos em que pessoas são mortas em situações banais, o que pode ser ao mesmo tempo uma representação crua da realidade que Polanski viveu e um recurso estilístico do autor do longa. De qualquer modo, Polanski é um gênio na arte de extrair sentimentos do seus espectadores, adotando uma técnica precisa, pouco virtuosa e muito prática, sabendo se colocar onde deve para registrar uma história vista sob a ótica de um artista desesperado por viver. 

O sadismo nazista é uma constante no filme e as cenas são apresentadas sem economia de detalhes.
O bonito uso da luz na composição de Polanski, um diretor consciente do seu trabalho como criador de obras de arte.

A cena em que Szpilman toca piano através de sua imaginação, embora hoje me pareça piegas, pode ter sido à época um recurso engenhoso e terno do diretor. Há alguns pequenos detalhes na direção de Polanski, no entanto, que me chamam mais atenção no filme do que a famosa cena do piano imaginário. Um exemplo é a sequência em que Szpilman caminha pelas ruínas de uma casa do gueto de Varsóvia segurando a lata de conserva que tanto custou para encontrar e que, no entanto, não consegue abrir.

Outro momento que me chamou atenção é quando o oficial nazista que encontra Szpilman assina documentos mecanicamente em seu escritório, uma anotação importante do diretor sobre o caráter burocrático e quase involuntário dos atos praticados pelos nazistas: aquela assinatura poderia significar tanto um vulgar ato administrativo quanto a autorização para o extermínio de milhares de pessoas. Ou  poderia significar as duas coisas, principalmente quando elas se confundiam. É nisto que reside a força de "O Pianista", na capacidade de seu diretor em demonstrar os limites da maldade humana e, ao mesmo tempo, a humanidade e o poder de um artista. Um filme necessário.

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